Por oito anos, enquanto aparecia na mídia como um eterno candidato à presidência da República, o petista Luiz Inácio Lula da Silva gostava de criticar as viagens de Fernando Henrique Cardoso ao redor do mundo, apontando nesses deslocamentos um desperdício de dinheiro público e uma forma encontrada pelo tucano para fugir dos problemas nacionais. Ao chegar ao poder, o ex-metalúrgico mudou de ideia. A pretexto de que suas viagens ao exterior tinham outro enfoque, e que como presidente da República não poderia ficar trancado num gabinete, só falando ao telefone – era preciso “olhar no olho” dos líderes mundiais, Lula visitou nada menos que 48 nações nos três primeiros anos de governo. Incluindo as repetições, foram 85 visitas a outros países. Uma média de mais de dois países a cada mês. Uma das primeiras viagens foi a Paris, onde Lula manteve um encontro com o presidente Jacques Chirac, cujo falecimento na manhã de hoje é destacado por toda a imprensa mundial.
Os dados constam do livro “Viagens com o Presidente – Dois repórteres no encalço de Lula, do Planalto ao exterior”, de autoria de Eduardo Scolese e Leonencio Nossa. Eles revelam que entre janeiro de 2003 e dezembro de 2005, Lula permaneceu 159 dias fora do Brasil – o que representa, na prática, 14% dos seus primeiros três meses de mandato no Palácio do Planalto. No período, acumulou uma decolagem internacional a cada 23 dias, com o discurso de integrar fisicamente a América do Sul, ajudar no desenvolvimento dos países pobres da África e da América Latina, avançar na relação comercial com a Ásia e o Oriente Médio e ainda estreitar as relações políticas e econômicas com a União Europeia e os Estados Unidos. O roteiro cumprido por Lula abrangeu, também, passagens pela ONU, como fez, esta semana, o presidente Jair Bolsonaro (PSL).
No histórico de visitas de Lula a outros países, Argentina e Estados Unidos aparecem à frente no ranking. Nos 36 primeiros meses de gestão, Lula esteve cinco vezes nos países então governados por Nestor Kirchner e George W. Bush. A seguir, com quatro visitas, apareciam Bolívia, Colômbia, Paraguai, Peru, Suíça e a Venezuela de Hugo Chávez, figura polêmica da qual Lula costumava zombar nas conversas com auxiliares, segundo relatam Scolese e Leonencio. Entre o início de 2003 e o primeiro bimestre de 2006, Lula passou por 18 países africanos, como São Tomé e Príncipe, ilha de língua portuguesa que recebeu Lula em duas oportunidades. “Ao viajar com frequência ao exterior, foi acusado pela oposição de estar deslumbrado com o poder e ao mesmo tempo usar tais deslocamentos como uma forma de fugir das suas responsabilidades como governante do país. Lula ignorava as críticas e ampliava cada vez mais sua agenda estrangeira. Esses encontros com presidentes e chefes de Estado não ocorriam apenas em outros países. Lula e o ministro Celso Amorim cansaram de recebê-los na rampa do Planalto, em almoços no Itamaraty e nos encontros organizados pelo Brasil, como a Cúpula América do Sul – Países Árabes, em maio de 2005”, descrevem os jornalistas Scolese e Leonencio.
Para visitar o maior número de países, Lula não descansava. Em abril de 2005, por exemplo, teve compromissos em três países africanos num único dia. Pela manhã, em Gana, participou de cerimônia de inauguração da Câmara de Comércio Brasil-Gana. À tarde, em Guiné-Bissau, conversou com líderes locais e visitou o túmulo do herói nacional Amílcar Cabral. À noite, no Senegal, reuniu-se com o presidente do país. A rotina era intensa e impedia até que assessores e seguranças decorassem o nome das moedas locais. As viagens foram pontuadas por gafes, incidentes diplomáticas, contratempos, fatos pitorescos. Em Madrí, Espanha, julho de 2003, ao ver a saída de Lula do carro oficial, o cerimonial do rei Juan Carlos I fechou a porta traseira antes que a primeira-dama Marisa Letícia (falecida) também descesse. Notando que apenas o presidente brasileiro havia saído do veículo, o próprio rei rapidamente resgatou a primeira-dama.
Uma outra gafe aconteceu na primeira viagem de Lula à África como presidente, em novembro de 2003, quando passou por São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Namíbia e África do Sul. As palavras desastradas de Lula vieram na penúltima etapa, em Windhoek, capital da Namíbia. Em discurso improvisado na sede do governo local, o presidente brasileiro constrangeu sua comitiva quando, em tom de elogio, disse que a capital do país, de tão limpa, nem parecia pertencer ao continente africano. Antes de completar um mês no Palácio do Planalto, em sua primeira viagem à Europa como presidente, o ex-sindicalista tratou logo de debochar dos jornalistas que ali trabalhavam para registrar a visita oficial à França. O fato ocorreu em Paris. Como de costume, fotógrafos e cinegrafistas aguardavam a chegada de Lula e do colega francês Jacques Chirac (que faleceu hoje). Queriam registrar a imagem dos dois, lado a lado, na entrada de um evento. O primeiro a surgir, na entrada da sede do governo francês, foi Chirac. Do alto de uma escadaria, passou a aguardar a chegada do colega brasileiro. Minutos se passam e lá vem Lula, subindo em direção ao francês, tendo em suas costas um batalhão de fotógrafos e cinegrafistas à espera daquela que pode ser a única imagem do dia dos presidentes juntos. Para surpresa dos jornalistas, Lula finge não ouvir os gritos de “presidente, presidente” para que se vire por alguns segundos e seja fotografado ao lado de Chirac. Da mesma posição, sem olhar para os lados, joga o braço direito para o alto numa sinalização do tipo “não me encham o saco”. Mesmo assim, a imagem dos presidentes lado a lado é conseguida segundos depois, quando Chirac percebe o clima constrangedor e, com as próprias mãos, gira o tronco de Lula na direção dos jornalistas. Lula simulou um sorrriso diante das lentes. Hoje, a França e o mundo lamentam a morte de Chirac. Lula cumpre pena de prisão na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. O poder é, realmente, efêmero.
Nonato Guedes