Se estivesse vivo, Ulysses Silveira Guimarães estaria completando 103 anos hoje. O político paulista, frasista emérito, morreu no dia 12 de outubro de 1992 num acidente aéreo. Morreu, não; encantou-se. No mar. José Aparecido de Oliveira dizia que Ulysses foi um tecelão da História. Carlos Castelo Branco, o “Castelinho”, lembrava que ele cresceu na adversidade e Tancredo Neves comparava: “O Ulysses preside o MDB como se fosse o Supremo Tribunal Federal”. Chamavam-no de “Senhor Diretas”, “Senhor Constituição”. No dizer de Alencar Furtado, líder cassado do MDB, lutou para espancar o obscurantismo e iluminar caminhos. Candidato a presidente da República em 89, na volta das diretas por que tanto lutara, foi injustiçado e ficou em último lugar, abaixo de um candidato folclórico, o doutor Enéas Carneiro, do Prona. “O bom bocado não é para quem faz, é para quem come”, conformava-se. Deu Collor nas urnas. “Impichado” no mesmo ano em que Ulysses morreu. Sortilégios da História.
Tive o privilégio de entrevistá-lo por três vezes num só dia – para a TV Cabo Branco, para o “Correio da Paraíba”, para a revista “A Carta”. Numa das fotos do meu arquivo, apareço ao seu lado e ao lado de Ronaldo Cunha Lima, numa das entrevistas, no restaurante Tia Nila. Autografou-me o livro “Rompendo o Cerco”, que contém 100 Frases e alguns pronunciamentos dele. “Ao brilhante jornalista Nonato Guedes, com o abraço do admirador Ulysses Guimarães”, escreveu, numa bela homenagem. Enviou-me telegramas informando que expedira para todos os diretórios estaduais do MDB artigo de minha autoria intitulado “Ulysses põe o dedo na ferida”, sobre estratégia que ele adotou para desmascarar o discurso dos militares que estavam no poder.
Era irônico, às vezes sarcástico – fórmulas a que recorria para resistir ao regime imposto pelas baionetas e pelo AI-5. Dizia: “O MDB está rouco de tanto criticar. A Arena muda de tanto ignorar. O Governo desacreditado de tanto descumprir”. Ou: “A tragédia do Brasil é ser um País sem política, pois a começar pela terminologia, não há política sem povo”. Mais incisivo: “Deixem o povo votar. Ainda que erre, acabará acertando. Mais importante do que dar o peixe, é ensinar a pescar, ensina o provérbio chinês. Pela receita não se sabe o gosto do pudim. É preciso prová-lo”. Da sua verve não escapavam os próprios colegas de atividade: “Político é como gato: está gemendo, mas está gozando”. E, numa direta a si próprio: “Dizem que tenho estrela. Pelo árduo trabalho em madrugadas e vigílias, para que ela brilhe, vivo passando kaol nessa estrela”.
Faz uma falta enorme, claro, sobretudo para os remanescentes da “turma do poire”, aguardentede pêra suíça que ele degustava nas noitadas de vigília democrática no restaurante “Piantella”, o quartel-general da oposição à ditadura militar. Dizia que ninguém conhecia ninguém. “Até meus amigos íntimos se surpreendem com minha veemência. Sou sereno por fora e inflamado por dentro. Sem a pretensão do paralelo, os cabelos brancos do ardente Manuel Bernardes sugeriram ao Padre Vieira a comparação: “Neve sobre o vulcão”. Achava que oportunidade é servir ao tempo e que oportunismo é servir-se do tempo. “A definição de Geraldo Vandré (cantor e compositor paraibano) é genial: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. E esta lição magistral: “Em política é preciso ter inesgotável e santa paciência. Principalmente para ouvir os néscios que querem ensinar pai a fazer filho, reinventar a roda, redescobrir a lei da oferta e da procura, que têm ideias como os que têm filhos e os abandonam à porta da igreja para outros criarem. É isso que dá enfarte ou úlcera, no duodeno”.
Num discurso proferido na sessão de instalação da Frente Democrática Nacional, em São Paulo, no dia 30 de junho de 1978, desdenhou das “reformas” enviadas pelo governo militar ao Congresso Nacional. “Reformar o quê? Se é o arbítrio, o arbítrio não se reforma. O arbítrio se extirpa, como um câncer. Arbítrio reformado é arbítrio confirmado; testemunha sua existência e o prolonga no tempo, ainda que reduzido. Quem usufrui o arbítrio não o elimina, para não perdê-lo. Maneja-o, maneira-o, ajeita-o, avança e recua. Abre a imprensa e lacra o rádio e a televisão à crítica e à oposição. Com uma das mãos acena com o habeas-corpus e certos institutos democráticos, enquanto com a outra subtraiu, com o pacote de abril, os governos estaduais ao povo, senadores ao Parlamento, a campanha pelos meios de comunicação às eleições. A refirma do Judiciário foi funesto presságio, Fechou o Congresso Nacional e colocou o Judiciário, indignado e injustamente suspeitado, contra a “reforma” e o governo. A Nação repudia tutelas e tutores. Quer autodeterminar-se e autogoverno é obra de todos e não de oligarquias”.
“Já é tarde, mas há tempo”, profligava doutor Ulysses Guimarães. Grande figura de estadista!
Nonato Guedes