Linaldo Guedes
A literatura, como a vida, é cíclica. Vejam o caso de “Ulisses”, fenomenal obra de James Joyce que narra 18 horas na vida de Leopold Bloom pelas ruas de Dublin. O próprio Joyce admitiu, quando a obra foi lançada, que “Ulisses” é uma adaptação da “Odisseia”, de Homero. Quase um século depois, uma nova obra literária busca enquadrar a experiência humana. Falo de “Vida aberta”, esse longo poema de W.J. Solha que surpreende o leitor com um caleidoscópio reflexivo sobre nossos anseios, agonias – tudo embalado pela melhor poesia que se pode ter.
Sim, vejo em “Vida aberta” ressonâncias de “Ulisses” em suas páginas. Não falo aqui do estilo e nem do gênero. Joyce apostou numa linguagem inventiva e inovadora em sua época em sua prosa cheia de significados. Solha não arrisca voos diferentes na linguagem, no estilo. No gênero, aposta na poesia. As ressonâncias de uma obra na outra vão, sobretudo, pela reflexão irônica sobre nossos atos, “como apache que nunca viu homem branco e lhe acha a outra… espora”.
Essa espora pode vir no “pique da Wallace Hartley Band, que tocou até o The… End, no Titanic”. Não por acaso, o poema longo começa com essa provocação. Não foi o Titanic o maior navio do mundo, embalde naufragado pela incompetência e arrogância humanas? Pois é basicamente disso que trata esse belo poema de Solha. Ao longo de suas páginas é isso que vemos, que lemos, que refletimos no espelho poético que ele espatifa em nossa cara.
Referências não faltam na obra de Solha. A partir da epístola do apóstolo que define que só a morte nos livra do estigma de ter a vida – triste e bela – como enigma.
“O impulso… pro estudo,
no entanto,
mostra que,
mesmo que a morte constantemente nos ameace,
ainda em vida veremos tudo,
face a face!”
E vemos tudo nas páginas da obra de Solha. Desde o micromonstro que devora o que pode, a Sebastião Salgado ou as traquinagens artísticas de Picasso. Desde Cortázar ampliando Verne; desde o êxodo de Moisés, às gentes, vivendo seus entretantos, morrendo…
“… fardada, à paisana,
… fantasiada,
em fila,
desfile,
sacana,
escola de samba,
marcha,
parada,
bacana,
bandos levando moamba
no igarapé,
no grande Iang-Tsé,
em barcos
e – em terra – nos trens,
metrôs,
ônibus,
carros,
tanques-de-guerra”
Está praticamente tudo nas páginas da obra de Solha: cowboys, filme dos Lumière, Rembrandt, Mozart, Gaudi, porco espinho fazendo sexo, Hawking, Mickey, Buda, Cristo, USP, Becket, Plinio Marcos, Rig Veda, Alcorão, Bíblia, Capitão Marvel, Platão… O que você vai fazer com tais referências, é melhor nem saber. Deixe-se apenas embalar pelo melhor que a poesia pode produzir: imagens em alta velocidade, ritmo, ironia e sabedoria que é
“pura magia, … igual à da fé – do Islã, cristã, pagã, dos judeus – que torna o oco dos templos, “presença” de Deus”
Solha usa como epígrafe T.S. Eliot e seus quatro quartetos:
“You say I am repeating
Something I have said before. I shall say it again”.
Sim, “Vida aberta” pode ser a repetição de algo que foi dito antes. Mas Solha dirá novamente. E de outra forma que você só vai se embriagar lendo.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal) e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.