Nonato Guedes
Ao deixar a liderança do governo Bolsonaro na Câmara, da qual foi destituída, a deputada federal por São Paulo Joice Hasselmann pôs o dedo na ferida ao desabafar que estava cansada de defender as trapalhadas da gestão empalmada pelo capitão reformado. No dizer dela mesma, a destituição da liderança, que é um cargo de confiança, simbolizou sua “carta de alforria”, livrando-a do incômodo de conviver com o fantasma permanente do desgaste, que é a característica do governo do presidente Jair Bolsonaro, associada à ausência de projetos concretos e de soluções prementes para os desafios que estão intocados desde a ascensão do ex-candidato do PSL à Presidência da República.
O gesto de Joice, que tenta ser pré-candidata à prefeitura de São Paulo nas eleições do próximo ano, a esta altura por outro partido, já que no PSL o metro quadrado ficou estreito demais e ela é presa fácil de manobras de sabotagem, evidencia que o presidente da República está no epicentro da crise que vem corroendo a legenda pela qual alçou voo numa disputa plebiscitária contra o Partido dos Trabalhadores (PT), dilacerado por denúncias de corrupção e envolvimento de líderes em atitudes antiéticas e antirrepublicanas. Aliás, o PSL foi uma espécie de “legenda de aluguel” ocupada por Bolsonaro para se registrar no páreo presidencial em 2018, tal como o PRN teve serventia para fazer decolar a pretensão de Fernando Collor de Mello em 1989, na primeira eleição direta pós-ditadura militar.
Tanto Bolsonaro quanto Collor nunca tiveram apreço por legendas partidárias ou por princípios doutrinários. O atual mandatário, inclusive, valeu-se de um sofisma desmoralizado ao pedir votos na campanha do ano passado, apresentando-se como “outsider” da política, embora seja um veterano nessa atividade, no exercício opaco do mandato de deputado, em que se destacou mais pelo inusitado (elogio a militares torturadores, por exemplo) do que pelo conteúdo de propostas para o Brasil. Com tal assertiva, pugnou para pegar carona no descrédito que a grande maioria da opinião pública nutre pelos partidos que estão aí, por suas cúpulas e até mesmo por muitos dos seus integrantes – alguns dos quais pularam do noticiário político para o noticiário policial com uma desenvoltura invejável nos últimos anos.
Por analogia, e respeito à História, é possível enquadrar nesse figurino, também, o ex-presidente Jânio da Silva Quadros, que irrompeu na cena como um fenômeno extraordinário, avassalador, na década de 60, travestido de cruzado da moralidade (a vassoura era o seu emblema), e que sempre se colocou acima de agremiações ou ideologias, desvelando em pouco tempo faceta oportunista que ainda hoje atormenta consciências que apostaram na sua pirotecnia de candidato. A renúncia de Jânio foi o corolário da sua crônica de desapego aos partidos e instituições e de descompromisso com os superiores interesses da Nação, que clamavam por medidas radicais, corajosas. No final das contas, Jânio era um projeto de ditador. Queixava-se que o Congresso não lhe oferecia condições de governabilidade quando, na verdade, almejava poderes excepcionais, autoritários, para impor alternativas que não encontravam eco no sentimento democrático da maioria.
Sabe-se muito bem no que deu a “aventura Jânio Quadros” e não é o caso de gastar espaço e atenção ressuscitando as variantes de personagem manipuladora e mistificadora felizmente expurgada pelas urnas do cenário em que habitava. O presidente Jair Bolsonaro, sem o carisma inicial que Jânio arrebatou e sem a fleugma postiça que Collor aparentou, é produto do aventureirismo que de tempos em tempos grassa nestes trópicos. Já começa a sofrer, sem que tenha se concluído, sequer, o primeiro ano de governo, o estigma do isolamento – dentro do partido pelo qual se elegeu, no Congresso, onde a base de apoio tende a se esgarçar por gravidade, naturalmente, e, finalmente, na sociedade, que já descrê ostensivamente do suposto cruzado contra a corrupção.
No caso de Bolsonaro, a situação é mais grave por envolver, na raiz, o próprio partido de que ele lançou mão para chegar ao Planalto. O PSL já se tornou conhecido no noticiário e junto à opinião pública como um imenso “laranjal”, onde prosperam negociatas e leilões sórdidos, escondendo interesses menores e de ética inteiramente duvidosa. Tornou-se um caso de polícia pelas investigações que transcorrem em várias seções estaduais acerca de expedientes excusos utilizados para favorecer eleição de candidatos a mandatos eletivos. É uma agremiação que está sub-judice aos olhos da moral do eleitorado, um exemplo de como não se deve ser partido político numa conjuntura em que a moeda corrente foi o apelo da mudança. É um traidor das aspirações de respeitável parcela do eleitorado brasileiro – e, por via de consequência, Bolsonaro é conivente nesse processo. Não é legenda feita para governar – mas, sim, criada artificialmente para vencer eleições. Agora, como antes, o povo não é bobo, a sociedade não se deixa enganar. A resposta virá a galope, no próximo ano. Confiram!