Nonato Guedes
Dom José Maria Pires, que já nos deixou mas que teve atuação profundamente marcante como arcebispo da Paraíba durante cerca de trinta anos, dá nome ao Hospital Metropolitano de Santa Rita, construído na Era socialista, na Grande João Pessoa, e que infelizmente tem estado no noticiário associado a irregularidades praticadas por organização social investigada na Operação Calvário. Dom José tinha uma visão crítica da Saúde Pública no Brasil e, sempre que possível, externou suas duras opiniões em plena ditadura militar. Em 31 de julho de 1980, num discurso como paraninfo dos concluintes dos cursos dos Centros de Ciências da Saúde, Ciências Exatas e da Natureza e de Tecnologia da UFPB, ele advertia os paraninfandos: “Vocês vão encontrar um povo doente, um país doente”.
Dom José pontuou nessa fala que havia doenças perfeitamente erradicáveis e que poderiam ser evitadas. “São elas que, seguramente, fazem o maior número de vítimas entre nós. Verminoses, tuberculose, sarampo, poliomielite, difteria e outras – desconhecidas dos primeiros habitantes destas terras, verdadeiras pragas que não deveriam ter entrado aqui e, uma vez que para infelicidade nossa, entraram, já deveriam ter sido expulsas inapelavelmente”, diagnosticou o arcebispo. E, elevando o grau de inflexão da fala: “Não é só o povo que está doente: o Brasil também está”.
Para o religioso, que veio de Minas Gerais e que se confessou estarrecido com a situação de pobreza do povo do Nordeste, a enfermidade do país dificultava a recuperação da saúde do povo. “O povo não pode tratar-se. Com alguma dificuldade se consegue uma consulta médica. Se o paciente não tiver prestígio ou um protetor, será provavelmente atendido sem interesse, com frieza, com pouco ou nenhum calor humano. Passam-lhe uma receita após exame rápido e sumário, baseado tão-somente na informação do consulente. Os medicamentos são caros e o paciente não pode adquiri-los, a não ser que pessoas ou instituições caridosas o ajudem. Nisto começa a aparecer a doença do país. Por que são tão caros os remédios? Temos uma flora riquíssima de raízes, folhas, resinas e frutas com elevado poder curativo. Temos laboratórios de pesquisa, dosagem e tratamento dessas essências. Por que aceitamos tão facilmente a dominação estrangeira em matéria de medicamentos, quando poderíamos ter coisas melhores e ao alcance dos bolsos mais modestos?”, prosseguia ele.
E mais: “Não me digam que a Central de Medicamentos (CEME) está fazendo isso. Não está. Se cresceram suas compras de medicamentos, ela os comprou em grande parte de laboratórios estrangeiros e não destinou recursos bastantes para a modernização dos laboratórios oficiais, que poderiam dedicar-se a um alentado programa de estudos. Está certo que os laboratórios estrangeiros controlem 77% das vendas de produtos farmacêuticos no Brasil. Podemos aceitar tranquilamente que dos 23 maiores laboratórios que espalham seus produtos pelo Brasil, apenas um seja nacional? Roche, Johnson, Shering, Merck, Fontoura, Sharp, Merrel, Moechst, Rhodia, Sandoz, Sarsa, Squibb, Ciba, Andrômaco, Bayern são alguns dos que têm além-mar suas raízes e para lá carreiam, em forma de “royalties” e de superfaturamento de matérias-primas importadas através de suas matrizes, o dinheiro que sugam de um país enfraquecido. A eles não pode interessar desenvolver pesquisas no Brasil; bem ao contrário. “Os farmacêuticos brasileiros são unânimes em dizer – afirmava o professor Evaldo de Oliveira, quando presidente da Academia Brasileira de Farmácia – que os laboratórios estrangeiros chegam a proibir a presença de técnicos e operários brasileiros em determinadas fases da produção de um remédio, feitas em segredo. Aos que insistem em descobrir algo, a demissão é o caminho mais indicado”.
Também as Ciências Exatas e da Natureza, na avaliação de dom José Maria Pires, deparavam-se com um quadro não muito animador. Explicava assim: “A matemática sofre arranhões e ferimentos graves a todo momento. A inflamação, megera incômoda com a qual somos obrigados a conviver contra a nossa vontade, estabeleceu uma constante movimentação de números e algarismos, impôs operações complexas e perturbou o princípio da equivalência dos termos de uma igualdade. Está tudo fora de lugar. Vocês, médicos, enfermeiros, vieram para consertar?”. Dom José Maria Pires questionava, também, se estaria havendo o uso correto da tecnologia ou se ela estava se prestando a interesses do capital ganancioso. Não obstante, dom José procurava ser otimista e predizia que uma nova Era estava surgindo. “É a era em que Davi vai vencer Golias, Judite corta a cabeça de Holofernes, a criança pisa a serpente e o Dragão não consegue matar o recém-nascido. Tempo de luta e de vitória dos pequenos contra os grandes”.
Dom José indagava: “Sugiro uma utopia? Certamente. E estou consciente disso”. Dom José Maria Pires era sábio!