Nonato Guedes
Bastante oportuna a ideia da deputada Pollyanna Dutra (PSB) de instituir 2020 como “O Ano de Celso Furtado”, evocando o centenário de nascimento do economista paraibano, figura singular e ilustre na vida pública nacional, que foi o primeiro superintendente da Sudene e ministro do Planejamento do governo João Goulart, deposto pela ditadura militar de 1964. Natural de Pombal, mas “cidadão do mundo”, que brilhou na Universidade de Sorbonne, na França, Celso Furtado foi um estudioso profundo da realidade regional e do subdesenvolvimento do país, buscando aprofundar-se nas verdadeiras causas que contribuíram para um quadro de desigualdades sociais gritantes, a par de modelos econômicos elitistas e excludentes, que marginalizavam os estratos sociais mais carentes.
“Penso não na grande distância entre as estrelas, mas no milímetro do telescópio dos astrônomos”, costumava afirmar Celso Furtado, corroborando o que a professora Laura Christina Mello de Aquino, em livro, denominou de “A utopia de Celso Furtado”, numa referência à Sudene. A professora Laura aponta Celso como um intelectual que procurou se esmerar na sua função social, oferecendo contributo à solução de problemas cuja origem desvendara, mercê de estudos densos. Por assim dizer, Furtado foi um intelectual orgânico, que idealizou e criou a Sudene com o objetivo de promover um planejamento global para a região Nordeste e mudar os rumos de sua política econômica. Até a criação da Sudene, o Nordeste era tido como um problema insolúvel a ser carregado pela Nação.
Laura Christina chega à conclusão de que, embora o projeto inicial da Sudene tenha sido modificado substancialmente depois do golpe militar de 1964 e do consequente exílio do seu mentor, o Nordeste, a partir da emergência da instituição, nunca mais foi o mesmo, pois a região se afirmara como entidade política e a sua face, em muitas dimensões, não seria a mesma. Ficou, então, a ideia-motriz que contagiou Celso, mantendo-se a Sudene como emblemática das possibilidades históricas de concretização de utopias e do papel fundamental de intelectuais públicos do porte de Celso Furtado como mentores de projetos sociais dessa envergadura. Acerca do perfil ideológico de Celso, Laura evitou confiná-lo em camisas de força conceituais por entender que o seu pensamento não permite um procedimento desse tipo. “Muitas vezes considerado um estruturalista cepalino, revela-se, também, um pensador eclético e independente, sem negar toda a influência da CEPAL e, sobretudo, de Raul Prebisch em seu pensamento econômico.
Diz a escritora: “Furtado inovou. Foi além das influências que recebeu e tornou-se, ele próprio, uma fonte de influência para uma grande quantidade de economistas e cientistas sociais em todo o mundo”. Especiosa na coleta de subsídios para um trabalho de fôlego que refletisse a personalidade de Celso Furtado em sua verdadeira dimensão, Laura valeu-se das atas do Conselho Deliberativo da Sudene, fontes primárias e inéditas. Fichou 79 atas, todas do período de Celso Furtado na Superintendência e teve a preocupação de fichar a ata da primeira reunião pós-golpe de 64, pois não há qualquer referência ao professor Celso Furtado. Como lembra Laura Christina, era o tempo da “caça às bruxas” e, como é sabido, a história oficial costuma tentar riscar do mapa adversários políticos, de modo que o trabalho valioso de sua autoria repõe o economista no contexto que, realmente, lhe cabe.
– A proposta de Celso Furtado era a de redimir a região Nordeste e, pelo que me revelaram minhas fontes, ele acreditou firmemente no seu projeto, sendo a Sudene o instrumento fundamental para vencer o atraso secular nordestino, o que implicava lutas por transformações econômicas, políticas e sociais, em várias e diferentes trincheiras – conceitua Laura Christina Mello de Aquino. Em adendo às observações da doutora Laura, devo lembrar que na década de 80, retornado ao Brasil após a temporada de exílio na França, Celso tentou enquadrar-se na seara política, concordando em que seu nome fosse proposto como alternativa do PMDB e das oposições para candidato de consenso ao governo da Paraíba em 82.
Entretanto, o distanciamento de Celso da Paraíba por tanto tempo não favorecia qualquer projeto de impulsão de uma candidatura ao governo, tanto mais porque o confronto dar-se-ia com expoentes de oligarquias que sustentavam a chamada política tradicional e que sobreviveram ao golpe militar dentro do país. As oposições acabaram optando pelo nome de Antônio Mariz, um dissidente do regime militar e um líder ético e corajoso, impiedosamente abatido nas urnas por Wilson Braga, o candidato das três máquinas – federal, estadual e municipal. Não era a vez de Celso nem de Mariz. A sementeira da Sudene é, contudo, o grande marco, que ditadura nenhuma consegue ocultar da História.