Por Nonato Guedes
Ainda lambendo as feridas por não ter conseguido ser nomeado embaixador do Brasil em Washington, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, retira do armário um esqueleto repudiado pela sociedade – o AI-5, famigerado Ato Institucional Número Cinco, datado de dezembro de 1968, que levou o país a mergulhar num segundo golpe em plena ditadura militar. Originalmente concebido como represália a um discurso do deputado Márcio Moreira Alves (RJ), com fortes críticas ao regime, o AI-5 produziu cassações de mandatos de parlamentares, cassações de direitos políticos de magistrados, intelectuais, estudantes, ativistas políticos. Revestiu a chamada ‘revolução’ de pinceladas de autoritarismo. Conferiu poderes excepcionais à ditadura para torturar e até matar nos subterrâneos das prisões. Instituiu a censura à imprensa. Cancelou o habeas-corpus. Enfim, instaurou a longa noite das trevas. Horas depois de ter sugerido a aberração, o filho do presidente tentou voltar atrás, negando que vá haver novo AI-5, dizendo que foi mal interpretado e pedindo desculpas. Vale o que ele havia dito. A desculpa não convence, eis a verdade.
A insinuação feita pelo filho do presidente Jair Bolsonaro sobre o retorno do arbítrio em sua face mais aguda foi arrimada no pretexto de que o mandatário está sendo alvo de um processo de radicalização que visa a apeá-lo do poder. Eduardo Bolsonaro é um pit-bull despreparado, que não consegue juntar lé com cré. Falta-lhe o conhecimento da realidade brasileira. Ao propor de formula esdrúxula a reedição de um Ato parecido com o AI-5 ele dá vazão a instintos primitivos enquistados na “direita” que empalmou o poder. Está claramente na contramão do sentimento da população, que não se afina com o totalitarismo e, sim, com a democracia. Partidos de oposição articulam-se desde ontem para tentar conseguir a cassação do mandato do ex-quase-futuro embaixador. Pode não dar em nada essa articulação, mas ela vale pelo simbolismo da reação. Sinaliza que há setores da sociedade comprometidos com a defesa da democracia.
Na reunião que decidiu a vigência do AI-5, um dos ministros presentes, Jarbas Passarinho, consultado sobre a medida, reagiu: “Às favas os escrúpulos”. Em seguida, assentiu com a instauração do retrocesso. O vice-presidente da República, Pedro Aleixo, manifestou-se contra, advertindo que com a adoção de poderes excepcionais o “guarda da esquina” se tomaria de pruridos como “otoridade” e, nessas circunstâncias, sentir-se-ia liberado para cometer excessos contra pessoas de quem não gostasse. Aleixo não foi levado em conta e ainda perdeu o direito de suceder o presidente Costa e Silva, quando este foi acometido de uma trombose que paralisou seus movimentos. Investiu-se no poder uma Junta Militar que Ulysses Guimarães intitulou de “Três Patetas” e de que fazia parte um general paraibano, Aurélio de Lyra Tavares, que nas horas vagas cometia sonetos com o pseudônimo “Adelita”. O AI-5 foi ridicularizado no exterior mas internamente foi o instrumento utilizado para que fosse desencadeada uma onda de terror sem precedentes.
O senador do Rio Grande do Norte, Djalma Marinho, filiado à Arena, partido de sustentação da ditadura militar, teve uma postura digna quando perquirido sobre seu apoio a atos arbitrários. Respondeu: “Ao rei, tudo, menos a honra”, citando Calderón de La Barca. Os analistas políticos consideraram o AI-5 “um golpe dentro do golpe”, elevando a radicalização política que estava grassando no país. Redigido por Gama & Silva, um serviçal da ditadura, o AI-5 foi um ato de força para facilitar a escalada de repressão que já estava organizada no interior do aparelho repressor. O episódio situou o Brasil no contexto das ‘repúblicas de bananas’, cuja característica era a imposição em antítese à democracia. Como disse com propriedade o jornalista paraibano Hélio Zenaide, os militares especializaram-se em “cassar” e “caçar”, esta última expressão indicando as perseguições políticas que pareciam não ter fim e que eram alimentadas por sádicos prestadores de serviços da ditadura.
Propor a volta do AI-5 é um comportamento grave. Coaduna-se, no entanto, com o espírito do “clã” Bolsonaro, em que pai e filhos já elogiaram publicamente torturadores e tomam como ídolos expoentes da ditadura. O Carlos Alberto Brilhante Ustra é uma espécie de guru do clã presidencial brasileiro – e, na cronologia da história, ele foi uma excrescência, um protagonismo de teses associadas ao retrocesso sob todos os pontos de vista. A proposta de retorno do AI-5 é uma consequência da linha de conduta que tem sido adotada pelos Bolsonaro, também conhecidos pelas suas ligações com milicianos. Certa feita, o deputado Ulysses Guimarães, ao ajudar a remover os entulhos do período arbitrário, sentenciou que tinha nojo – e ódio da repressão política institucionalizada. A sociedade brasileira tem nojo da postura do filho do presidente da República.