Por Nonato Guedes
A instituição de 2020 como “O Ano de Celso Furtado” na Paraíba, por iniciativa da deputada estadual Pollyana Dutra, reverberando com antecedência as celebrações do centenário de nascimento do economista natural de Pombal que se projetou como fundador da Sudene, faz lembrar um episódio verificado em Paris, na França, no começo da década de 1970, quando o então deputado federal Marcondes Gadelha atuava no “grupo autêntico” do MDB, em oposição ao regime militar, e Celso estava exilado, após ter sido cassado pela ditadura. Gadelha buscava informações concretas sobre o regime militar brasileiro na área econômica para poder embasar os números que apresentaria em missões delegadas pelos “autênticos”. Foi quando esbarrou com Furtado, que lecionava na Faculdade de Rue d’Assas, situada um pouco mais abaixo do Instituto onde Marcondes estudava.
Em depoimento para Ana Beatriz Nader, que constou do livro “Autênticos do MDB – Semeadores da Democracia”, Gadelha definiu como “singular” a abordagem a Celso no exílio. O então deputado paraibano foi alertado pelo colega Hermano Alves sobre o nervosismo de Celso, pois, mesmo ele estabelecido, lecionando Direito, tinha os passos vigiados pelo pessoal da repressão no Brasil e o SNI mandava agentes a Paris com esse propósito. “Por isso, Celso vivia muito tenso, tendo piorado sensivelmente depois de uma visita à Grécia, onde também havia ditadura. Desde a sua volta, não queria conversa com nenhum brasileiro, desconfiando que de alguma forma poderia ser um agente”, narrou Gadelha.
E prosseguiu: “Diante desta situação, resolvi dessensibilizar o Celso Furtado, pois eu precisava das informações e, com este fim, passei a frequentar suas aulas, sentando-me na primeira fila para que ele pudesse ir se acostumando com a minha fisionomia. Depois de umas dez aulas, pensei que ele estaria mais ou menos familiarizado comigo e fui esperá-lo em uma livrariazinha da esquina, que vendia livros americanos. Quando ele entrou, abordei em português:
– “Professor…” Ele deu um salto e indagou:
– Quem é o senhor? O que deseja? Naquele tempo, eu era muito jovem, tinha uma baby face e rapidamente raciocinei que se me identificasse como deputado, daí, sim, ele ficaria desconfiado.
– “Eu sou um estudante brasileiro, estou preparando uma tese sobre o Brasil e creio que os números sobre o sucesso econômico, apresentados pelo governo brasileiro, são falsos. Preciso ter números confiáveis, e fui orientado por meu instrutor a procurá-lo…é seu amigo”. Eu tinha cara de estudante mesmo.
– Quem é seu instrutor? – perguntou-me, desconfiado.
– “O professor Jean Vahl, o qual orientou-me que o senhor seria a única pessoa com condições de fornecer informação fidedigna sobre o quadro brasileiro”, reforcei.
– O senhor está querendo esses dados para quê?
– Eu já disse ao senhor, é para uma tese…
– E o senhor vai apresentar aqui na França ou no Brasil?”. Daí, Celso Furtado passou de entrevistado a entrevistador e eu disse:
– Vou apresentar aqui, mas se ficar boa posso apresentar no Brasil também”. Ele replicou:
– É uma tese ou memória?
– É uma tese, mas pode ser inclusive memória….
– O senhor quer saber de uma coisa? Eu não tenho qualquer informação para lhe dar. Além do mais, os dados que recebo são da ONU, que por sua vez recebe do governo brasileiro…e se quiser esses dados o senhor vá ali na esquina, há uma livraria da CEPAL e encontrará facilmente este material. Aviso que esses dados também não são muito confiáveis. Não tenho mais nada a lhe dizer. Até logo e passe bem”.
Muito tempo depois, já na época da abertura política, Marcondes lançou Celso Furtado como candidato a governador da Paraíba e tentou reconstituir essa história para ele, da qual não se lembrava mais. Esse fato ilustrativo é para mostrar o mar de sargaço em que navegávamos na ditadura…nada era confiável e até o mais ilustre economista da oposição, Celso Furtado, não tinha muita coisa a nos dizer. Estava tenso, preocupado e mesmo porque os dados que dispunha para trabalhar não eram confiáveis – concluiu Marcondes.
Com tantos relatos assim sobre a paranoia que a ditadura militar criava, o deputado Eduardo Bolsonaro ainda vem propor a volta do AI-5. Vade retro, deputado!