Por Nonato Guedes
Ao subir à tribuna da Câmara dos Deputados como presidente da Assembleia Nacional Constituinte, em cinco de outubro de 1988, o deputado Ulysses Guimarães anunciou a promulgação da Constituição com um dos mais belos discursos da história brasileira. “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim, divergir, sim, descumprir, jamais, afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia (…) Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria”.
Ganhamos a sétima Constituição, com ampla distribuição de direitos e garantias individuais, o que levou o doutor Ulysses a chamá-la de “Cidadã”. Complexa, detalhista, saiu da gráfica oito vezes maior que a americana. Perdia em tamanho apenas para a Constituição indiana e a Constituição nigeriana. Em pouco tempo já recebera 99 emendas. A Constituição dos Estados Unidos com mais de duzentos anos e apenas sete artigos tem 27 emendas, como pontuou “A História da Carta”, publicação primorosa da revista “Veja” e da Editora Abril nos 30 anos da Constituição. É essa a Carta que já está passível de alterações. A ideia de convocação de uma nova Constituinte começa a circular na Câmara Federal. Dois deputados – o capitão Augusto, do PL-SP, e Fábio Ramalho, do MDB-MG, alegam que a Constituição de 88 contém muitos excessos e está desatualizada, carecendo, portanto, de uma reformulação radical.
Mesmo no auge da promulgação da “Constituição Cidadã” houve restrições ao texto final, como a de que, ao criar um Estado de bem-estar social de país desenvolvido, a Carta teria se tornado incompatível com a realidade do país. Nas palavras do constituinte Roberto Campos, prometia-se uma “seguridade social sueca com recursos moçambicanos”. Para o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, economista paraibano, “da elaboração da Carta saiu um conjunto incoerente que abrigou utopias, intervencionismo, patrimonialismo, paternalismo e corporativismo”. Houve excessos, sim, como a proposta de tabelamento dos juros em 12%. No entanto, repetindo Ulysses, em defesa da criatura recém-nascida, “não é a Constituição perfeita; se fosse perfeita, seria irreformável”.
O Brasil, como anotou “A História da Carta”, vive, desde 1945, em permanente regime de reforma constitucional. Em 1945, uma Assembleia Constituinte trabalhou quase um ano para fazer uma Constituição. Alguns meses depois já se tentava reformá-la. Em 1967, o Congresso trabalhou dois meses em regime de tempo integral para fazer uma nova Constituição. Trinta dias depois já se pensava em reformá-la. Alega-se que são as reformas que possibilitam a superação de crises. Em artigo publicado em 23 de julho de 1980, intitulada “A saída histórica”, Ulysses alertava que a Constituinte era a saída civilizada para o impasse social e político brasileiro, “a saída consensual, evolutiva, sem traumas, a saída não cirúrgica”. E adiantava: “É a saída histórica, no Brasil e no mundo, entendida como a solução indicada pela experiência e pelo passado para crises semelhantes às que ora sacodem o país. Fazer com a rua, antes que seja feito na rua”.
O presidente do PMDB refletia ainda: “Deixar de reconhecer que a sociedade esteja profunda e perigosamente insatisfeita, do lixeiro ao empresário, é atitude suicida, do tipo avestruz, que na tempestade afunda a cabeça na areia; é atitude de baile da Ilha Fiscal, com a corte e dom Pedro II dançando, quando, de fato, estavam depostos e às portas do exílio; ou de Luís XVI, que no dia 14 de julho de 1789 escreveu em seu diário: “Hoje, nada”, quando o povo estava tomando a Bastilha e ele e sua família iniciavam a trágica marcha para a guilhotina. Eis alguns testemunhos que gritam aos ouvidos e saltam aos olhos. As vaias e os aplausos do povo são uma advertência e uma lição. Impõem humildade e sabedoria para ser aprendidos. A sociedade está órfã de um pacto social e exige tê-lo, com urgência”. Cortante, o doutor Ulysses arrematava:
– Para o Brasil e os brasileiros, democracia é o nome político da paz e a Constituinte o único fórum capaz de escrevê-lo. É adjetivo saber se é o atual presidente da República quem deve convocá-la, mas exemplos históricos sugerem a sua urgência. Getúlio Vargas convocou a Constituinte quando pressentiu que a crise nacional caminhava para se tornar incontrolável. Dom Pedro I também. Já dom Pedro II preferiu ir dançar na Ilha Fiscal…