Nonato Guedes
Um ano de prisão numa sala especial da Polícia Federal em Curitiba parece ter danificado seriamente os neurônios do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o líder do PT. Usufruindo as benesses de uma liberdade que pode ser temporária, mas que foi outorgada pelo Supremo Tribunal Federal, Da Silva tem aproveitado o tempo para lançar diatribes a esmo, atacando a tudo e a todos, de pessoas a instituições, com a mesma veemência com que tenta imantar o PT de uma aura de pureza que a agremiação nunca teve desde quando passou a ser refúgio de mensaleiros e de adoradores de maracutaias, para usarmos uma expressão do “lulês”. Autocrítica? Nem pensar. “Quem quiser que o PT faça autocrítica, que faça a crítica”, desafia o “pajé” petista. “Na dúvida, a gente defende o nosso companheiro”, adianta ele, não deixando margem a dúvidas quanto ao triunfo da arrogância sobre a humildade.
No primeiro momento em que se sentiu livre, foi até compreensível o desabafo proferido por ele, coalhado de bravatas, como tática para segurar a militância, diante da escalada de defecções que ameaça contaminar uma legenda que polarizou, com o PSDB, os embates memoráveis da história recente da política e do poder no país. Mas esperava-se que, ato contínuo, o ex-mandatário cuidasse de remodelar o PT, submetendo a sigla a um processo radical de depuração de vícios e de quadros perniciosos, até como estratégia voltada para atrair aliados na travessia que vem por aí, completamente diferente, tisnada por um forte confronto ideológico entre direita e esquerda que esteve ausente de campanhas presidenciais nos últimos anos.
Observa com propriedade o colunista Leandro Mazzini, que assina “Esplanada”, que a despeito da liberdade, a condenação em segunda instância que o tira do processo eleitoral faz do ex-presidente Luiz Inácio uma peça solitária no xadrez do jogo eleitoral. Aspas para Mazzini: “Com sua prisão de 580 dias e o PT esfacelado Brasil adentro após perder governos de Estado e a presidência da República, partidos tradicionalmente aliados se afastaram da legenda que há décadas encabeçou as chapas. Lula está com dificuldades de articulação com o PDT, PSB e até PCdoB, apesar do respeito dos comandantes da legenda ao cacique ferido”. Na verdade, a grande dificuldade de Lula se dá por dois fatores: o personalismo exagerado em torno dele como única figura de proa do petismo e a incerteza quanto a uma provável candidatura sua ao Planalto em 2022. Mesmo que lá na frente, por artifícios jurídicos (não esqueçamos que o Brasil é o país do jeitinho e do casuísmo) Da Silva ganhe uma fresta qualquer para registrar a candidatura, ele estará exposto a polêmicas judiciais que farão o partido perder tempo e isolar-se no campo da centro-esquerda, o que reduz consideravelmente o seu poder de fogo e abala o cacife do qual deseja dispor para pavimentar uma acalentada volta ao poder.
Sem perspectiva de diálogo ou composição com outras legendas, Lula e o PT não irão a lugar nenhum. Aliás, irão a um lugar, sim: ao traço em pesquisas de opinião pública que forem feitas na sequência da evolução do calendário político-eleitoral do país, em que avultam, em primeiro lugar, as eleições municipais de prefeitos e vereadores no próximo ano, para só então, dois anos depois, abrir-se a caça ao Planalto, esporte predileto de Da Silva e indiscutível objeto de desejo de petistas descolados que ainda purgam o ostracismo ou o íngreme caminho da reinserção na normalidade. Conspira, no resumo da ópera, contra as ambições lulopetistas, o anátema de que a História não se repete, senão como farsa. A assertiva consta do catecismo marxista, a que Lula nunca deu atenção e pelo qual jamais teve curiosidade ou interesse em se aprofundar.
Preso ou solto, Lula tem sua significação no contexto como símbolo. Por exemplo: ninguém tem mais autoridade do que ele, na presente conjuntura, para empalmar a trincheira da oposição ao governo do capitão reformado Jair Bolsonaro. Até porque, no campo do extremismo, são como vinhos da mesma pipa, em matéria de estilos. Jogam sempre na radicalização, pouco se lhes dando que estejam, ou não, contribuindo para atrair tempestades e agravar impasses na moldura política-institucional do país. Como diria o poeta Ascenso Ferreira, o que querem, mesmo, é “rosetar”, seja lá o que isto signifique e independente de supostas boas intenções quanto ao destino do Brasil como um país mais justo, mais democrático e mais desenvolvido. A linguagem que já começa a se falar é de baixo calão, de parte à parte, o que assusta os eleitores maduros e os obriga a retirar as criancinhas da sala para não serem tosquiadas pela carnificina verbal que está sendo travada. Sim, parece inevitável esse rito de passagem. Mas que, pelo menos, seja a um custo menos traumático para uma sociedade que já perdeu as esperanças há muito tempo.