Nonato Guedes
Ao ensejo, hoje, da oportuna reparação que faz o presidente da Assembleia Legislativa, Adriano Galdino (PSB), concedendo “in memoriam” o título de Cidadão Paraibano a dom José Maria Pires, que durante três décadas, como arcebispo da nossa Arquidiocese, foi a voz dos oprimidos e o facho de resistência contra as arbitrariedades praticadas pela ditadura militar instaurada em 64, vale lembrar uma nuance, entre tantas, da passagem do prelado mineiro de Córregos pelo solo tabajara, onde distribuiu justiça e esperança. Diante das violências cometidas pela linha dura do regime militar, ceifando quadros valorosos da política, da Universidade e de outros segmentos sociais, a Igreja da Paraíba sentiu-se obrigada a dedicar-se à causa dos Direitos Humanos. Em 1976, por ocasião dos dez anos da presença de dom José no Estado, Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo da arquidiocese de São Paulo e um dos expoentes do chamado “clero progressista”, veio a João Pessoa inaugurar o primeiro Centro de Defesa dos Direitos Humanos criado no Brasil.
Dom Paulo, já falecido, teve atuação combativa na denúncia de atentados aos direitos humanos na Arquidiocese de São Paulo , tendo participado do culto ecumênico celebrado em memória do jornalista Wladimir Herzog, que foi assassinado nos porões do DOI-CODI, bem como do operário Manoel Fiel Filho, também torturado e assassinado pelos agentes da repressão estatal. Dom Paulo fez muito mais: organizou um alentado dossiê intitulado “Brasil: Nunca Mais”, que se constituiu no mais completo relatório sobre as vítimas da longa noite das trevas que se abateu sobre o país, apontando, inclusive, nomes de policiais envolvidos nos atos criminosos e não punidos. Esse dossiê teve repercussão internacional e colocou em xeque a imagem da ditadura militar brasileira, além de ter provocado reviravoltas dentro do chamado “sistema”, com o expurgo lento e gradual dos remanescentes da fase do terror, propagandistas das torturas sinistras.
Diz dom José Maria Pires em um dos seus escritos: “A Igreja da Paraíba procurou ser um espaço de liberdade para quem se colocava ao lado dos oprimidos. Ela se tornou a voz dos que não tinham voz e ocupou o lugar de instância crítica do governo, função que devia ser dos sindicatos e dos partidos políticos, instituições silenciadas e continuamente vigiadas. Foi nessa época que surgiu o “Grupo dos Notáveis”. Eram sacerdotes idosos, todos usavam batina, eram conhecidos e respeitados por toda a sociedade. Já faleceram todos – um dos últimos a partir foi Monsenhor Sílvio Celso de Melo. Uma das tarefas do Grupo dos Notáveis era localizar e visitar presos políticos e sempre foram bem-sucedidos. A visita deles confortava o preso, que geralmente ficava incomunicável, e tranquilizava a família que, assim, podia ter a certeza de que ele estava vivo e não estava sendo torturado. Quando o detido era um agente de pastoral, alguém permanecia em frente à Polícia Federal. Os companheiros e companheiras se revezavam dia e noite. Vez por outra, algum deles ia até a portaria para, delicadamente, pedir notícias”.
No prefácio ao livro-dossiê “Brasil: Nunca Mais”, dom Paulo Evaristo Arns observa que as angústias e esperanças do povo devem ser compartilhadas pela Igreja. As experiências que ele procurou relatar, conforme disse, pretenderam reforçar a ideia de que a tortura, além de desumana, é o meio mais inadequado para levar à descoberta da verdade e chegar à paz. Dom Paulo contou que nos tempos da mais intensa busca dos então chamados “subversivos” (opositores da ditadura militar), ele atendia semanalmente, na Cúria Metropolitana em São Paulo, a mais de vinte, senão cinquenta pessoas, todas em busca do paradeiro de seus parentes. Um dia, ao abrir a porta do gabinete, foram ao seu encontro duas senhoras, uma jovem e outra de idade avançada. A primeira, ao assentar-se em sua frente, colocou de imediato um anel sobre a mesa, dizendo: “É a aliança de meu marido, desaparecido há dez dias. Encontrei-a esta manhã, na soleira da porta. Sr. Padre, que significa essa devolução? É sinal de que está morto ou é um aviso de que eu continue a procurá-lo?”. E arrematou dom Arns: “Até hoje, nem ela nem eu tivemos resposta a essa interrogação dilacerante”.
Sobre dom José Maria Pires, convém lembrar que ele foi extremamente corajoso, intimorato, ao convidar para dirigir o Centro de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana o advogado paulista Wanderley Caixe, já falecido, que era militante de esquerda, com filiação aos quadros do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário – PCBR e que sofreu violências incontidas por parte dos agentes da repressão. Dom José manteve a indicação de Caixe mesmo com a pressão feita por autoridades do governo, ligadas ao antigo grupo político da Várzea da Paraíba. O ex-secretário de Indústria e Comércio Carlos Pessoa Filho chegou a acusar o arcebispo de comunista por “proteger” Wanderley Caixe. Foi desautorizado na afirmativa pelo então governador Tarcísio Burity, que procurava manter relações respeitosas com a Igreja e, sobretudo, com dom José.