Nonato Guedes
Há 52 anos a Assembleia Legislativa da Paraíba aprovou a concessão do título de “Cidadão Paraibano” a Dom José Maria Pires, natural de Córregos, Minas Gerais, que foi arcebispo metropolitano do Estado entre 27 de março de 1966 e 31 de dezembro de 1994. A Mesa da AL condicionou a outorga da honraria a uma leitura prévia do discurso que o prelado iria proferir. Uma comissão de deputados chegou a procurar dom José para marcar a data da solenidade, mas ele se recusou a entregar cópia do texto e dispensou a homenagem. Posteriormente, na abertura política, ele foi procurado por parlamentares alegando que não havia necessidade de entrega prévia do texto. “Agora não me interessa mais. Estou cada vez mais comprometido com o povo paraibano e vejo que o povo paraibano não tem Cidadania porque não tem emprego, não tem casa, não tem o que comer. Então, não me sinto à vontade para receber esse título”, reagiu.
Hoje, à tarde, no Plenário José Mariz, a Assembleia fará a entrega do título, “post mortem”, a dom José, representado pela figura do atual arcebispo, dom Manoel Delson. A iniciativa partiu do atual presidente Adriano Galdino (PSB), que vê no gesto uma “reparação histórica” da Assembleia diante da omissão cometida há meio século. Dom José, embora tenha apoiado, num primeiro momento, a chamada revolução militar de 1964, tornou-se um crítico contundente das arbitrariedades e violações de direitos humanos cometidas por agentes da repressão e passou a figurar no índex dos representantes da nova ordem. Ele faleceu em 2017, em Belo Horizonte, vítima de problemas respiratórios, tendo sido sepultado em João Pessoa. Era respeitado por autoridades e querido pelo povo, que o alcunhou de “Dom Pelé”. Dom José foi o primeiro bispo negro da história do clero no Brasil e o discurso que ele preparou para ler na Assembleia foi publicado por Sampaio Geraldo Lopes Ribeiro no livro “Dom José Maria Pires – Uma voz fiel à mudança social”. O site “Os Guedes” publica a seguir, na íntegra, o texto que não foi lido:
“Ilmos. Srs. Deputados,
A coincidência deste título de cidadão paraibano que me ofereceis nas proximidades das festas natalinas me lembra um fato que se torna a ideia mestra de toda esta minha palavra de agradecimento. Ela poderia chamar-se a dialética do universal e do particular, porque me lembro de Deus feito homem e no mesmo instante feito cidadão do Império Romano. Como homem, Deus assume a espécie humana, se faz parcela da humanidade, sem discriminação nem preconceitos. Assume uma tarefa histórica, destinada a qualquer ser onde se verifica a realidade humana. Dir-se-ia naqueles tempos: destinada a judeus e a gentios. Dir-se-ia, quatro séculos depois: destinados a romanos e bárbaros. Dir-se-ia hoje: destinada a negros e brancos, a homens de direita e de esquerda, do Oriente e do Ocidente, do capitalismo e do comunismo. E este é o elemento universal.
Mas o próprio nascimento do Cristo é marcado por um elemento particular. Ele não é apenas cidadão do mundo. Ele pertence a uma raça, a de Davi. Pertence a um império e é cidadão romano. E, por isso, Maria tem de ir a Belém, onde as leis do Império ordenam que se apresentem seus cidadãos e descendentes da família de Davi. Aí está o particular. Esta reflexão não vem ao acaso, quando um bispo católico se faz cidadão da Paraíba. Porque como católico se afirma o elemento que a própria etimologia da palavra exprime: universal. Como cidadão deste Estado, deste povo, desta porção da realidade brasileira, se afirma o elemento particular. Esse título que ora recebo visa a prestigiar decerto mais a Igreja que represento do que o homem que sou. E se algum mérito recair sobre mim mesmo, será, apenas, pelo fato de eu ter tentado ser aquilo que Cristo é: cidadão de um povo sem deixar de ser cidadão do mundo. Também pelo fato de minha vivência no meio de vós ter sido aquilo que a Igreja é: inspiradora universal das realidades particulares, banhando cada momento histórico que surge, sem se comprometer com ele, para não morrer com ele, porque tudo o que nasce com o tempo, morre com o tempo. E nós cremos numa Igreja que só é contemporânea de todos os homens porque é eterna.
De outra parte, esta mesma Igreja não se aliena do mundo, com medo de se comprometer com ele. Sei que ela vive impregnada de reflexões de eternidade e de riscos eternos. E por isso mesmo ela pensa no tempo e se engaja nas realidades temporais: porque o que vem depois do tempo é decidido no tempo. A eternidade do homem é apenas o eco dos seus passos no mundo, por isso o particular lhe interessa. Isto é um elemento essencial da Igreja. Esta é a novidade do Novo sobre o Velho Testamento, porque antes de Cristo o pensamento de Deus teve preferência por um tipo de civilização judaica, o regime teocrático. Com o Novo testamento surge a novidade da Igreja: ela é equidistante de qualquer civilização, de qualquer regime político. Não existe a civilização cristã, nem mesmo a medieval merece esse nome com exclusividade. Não existe o partido político cristão: nenhum se atribua esse título com exclusividade. Existe uma igreja universal, banhando realidades particulares. Nascem Pedro, Maria, João. A Igreja os batiza. Nascem as civilizações grega, romana, bárbara, medieval, moderna. A Igreja as batiza. E essa vontade de batizá-las, é bom que sempre se repita, é universal. Ensaia-se, por exemplo, hoje, uma civilização comunista. Ninguém pense que a Igreja se recuse a assumi-la. Antes espera que os extremistas do ateísmo oficial um dia tombem para a conversão e o batismo.
A Igreja crê que nenhuma realidade humana é tão satânica que nada de bom se possa salvar nela. E por não querer entender isto, é que muita gente se escandaliza ao ouvir de bispos elogios a aspectos positivos de realidades socialistas, seja em Cuba, China ou Moscou. A Igreja crê que nenhuma realidade humana é tão divina que nada de mau se possa apontar nela. E por não querer entender isto é que muita gente se escandaliza ao ouvir de bispos censura a aspectos negativos de regimes que se pretendem até cristãos ou defensores da cristandade, como os de Franco ou Salazar. Neste particular, ninguém entende a Igreja, como ela pensa, enquanto não entender o mundo, como ele é, porque ainda em nossos dias há quem imagine que o mundo está dividido entre bons, de um lado, e maus do outro, separados pelo muro de Berlim. A Igreja acredita que o mundo é o campo sobre o qual em cada palmo nasceram joio e trigo, o bem e o mal. Para assumir a imagem anterior, a Igreja pensa que o muro de Berlim passa por dentro de cada um de nós. E o bem e o mal se mesclam em nossos pensamentos, nossas palavras, gestos e passos. Só resta uma opção extra para a Igreja: ser universal e particular ao mesmo tempo. Assumir todos os homens, assumindo cada homem: o capitalista e o comunista, o patrão e o operário, o rico e o povo.
Nos últimos tempos, tem se dito que a Igreja vai passando para a esquerda. Diante dos princípios aqui enunciados, isto seria um contra-senso. Há joio e trigo de ambos os lados. Se, entretanto, nos afastássemos um instante das realidades concretas, dos homens que a dirigem, dos atos humanos, sempre falhos porque humanos, e nos ativéssemos a uma pouca conceituação do que seja direita e esquerda, talvez se ativéssemos pudesse dizer que a esquerda se aproxima mais do Evangelho. Repito – porque é melhor mil repetições do que uma ambiguidade –não falo de regimes vigentes, de realidades sociais ou políticas: falo de conceitos. A ideologia da direita se exprime como preocupação de promover alguns, privilegiar alguns, dar a alguns acesso às conquistas da humanidade. Em um segundo momento pensa no resto da humanidade para o qual procura dispensar gestos de compaixão e desejos de promoção humana, contanto que não fira seus privilégios, suas situações criadas.
Em teoria, a esquerda se apresenta como aquela tendência de pensar não apenas em alguns, mas no Homem. Não deseja a promoção de alguns, mas de todos. Mas há preço a banir da terra os privilégios vigentes. Nestes termos, a ideologia de esquerda, que não é necessariamente comunista, é e corre paralela com as ânsias da Igreja que deixaria de ser Igreja se deixasse de ser universal, que trairia a mensagem do Cristo se pensasse de preferência em alguns para privilegiá-los. E quando sua preferência se afirma pelos pobres – é esta uma nota do Evangelho – não é por desejar aos ricos uma condição infra-humana, é por desejar a todos os bens que ainda faltam a tantos.
Representante desses ideais evangélicos, vim eu, mineiro, para a Paraíba, e me torno, oficialmente, paraibano – sinal de que o Bispo deveria mesmo pensar no particular, em nossa terra, em nossos problemas. Aqui enxerguei desde o início a luta contra dois determinismos: um geográfico, outro histórico. No determinismo geográfico, no sentido mais lato, incluo o fenômeno das secas, a precariedade da agricultura, a falta da indústria, tudo o que condiciona o subdesenvolvimento. E, para que o mal não esteja apenas na terra, para lembrar o joio dentro do homem, penso nos que, em tempos não muito remotos, fizeram a indústria da seca, deixando a Paraíba mais subdesenvolvida. Penso no latifúndio improdutivo ou mal explorado. Penso na condição de miséria a que se reduziu o camponês e no pouco de indústria que temos. Penso na insegurança do trabalhador na hora atual. Para superar os condicionamentos geográficos, era preciso a boa vontade. Aqui encontrou seu lugar a voz do Evangelho. E para anunciá-lo a respeito dessas realidades, fui me fazendo cada vez mais paraibano. Como sinal dos tempos e resposta a esses males, surge, no plano histórico, a Sudene. Surge, nos anseios coletivos, a sede do desenvolvimento.
O outro determinismo, esse histórico, vem sendo rompido gradativamente. É que o povo simples de nossa Paraíba pensa espontaneamente como todos os povos simples. Imagina a História como uma realidade cíclica, fatal, inexorável. E se o desenvolvimento veio como sinal dos tempos, e em resposta aos determinismos geográficos, a conscientização vem como sinal dos tempos e como resposta aos determinismos históricos. Nosso povo vai se conscientizando. Vai sabendo que todo homem tem direito a uma condição humana e que os bens do mundo pertencem à humanidade (….) O mineiro que aqui veio ser paraibano quis, durante esta estadia, ajudar o povo nesse processo de conscientização. Desejou a alfabetização de todos os homens, para que todos pudessem exercer os direitos políticos e humanos que lhes assistem. Nunca me ocorreu o medo de que a conscientização das massas fosse uma tática comunista. Antes me parece ser a vocação histórica do homem, se conhecendo para se construir. E resistir à História é ser suicida. Os princípios universais do Evangelho encontram sua temática particular, nesse momento histórico e nesse recanto da terra, quando lembram aos homens de boa vontade o dever cristão de humanizar a Paraíba. Aí está, Srs. Deputados, como vejo e recebo esse título que ora me outorgais. O legislativo vem dizer de público que a Igreja tem razão, que o Evangelho e problemas humanos caminham pelos mesmos caminhos e que serei o mais paraibano dos cristãos quando for o mais cristão dos paraibanos. É isto o que me pareceis dizer neste momento. E vos respondo: muito obrigado”.