Linaldo Guedes
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Maria Firmina dos Reis nasceu na Ilha de São Luís, no Maranhão, em 11 de março de 1825. Foi registrada como filha de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Em 1859, publicou o romance “Úrsula” considerado o primeiro romance de uma autora do Brasil. Em 1887, publicou na Revista Maranhense o conto “A Escrava”, no qual descreve uma participante ativa da causa abolicionista. Morreu, cega e pobre, aos 95 anos, na casa de uma ex-escrava, Mariazinha, mãe de um dos seus filhos de criação. Mas antes de morrer lançou algumas obras, entre elas “Cantos à Beira-Mar”, em 1871. É esse legado de Maria Firmina dos Reis que é resgatado agora pela cantora e compositora paraibana Socorro Lira.
Socorro Lira lançou “Cantos à Beira-Mar”, décimo segundo álbum de sua carreira, com dez composições sobre poemas da escritora e poeta maranhense. A ideia de fazer essa homenagem, segundo Socorro, aconteceu em um encontro por ocasião dos 100 anos de morte da Maria Firmina. “Maria Valéria Rezende perguntou se eu musicaria alguns poemas para cantar no Mulherio das Letras, no Outubro de 2017, em João Pessoa, quando e onde a autora foi homenageada. Ou mulherageada (risos). Quando fiz as primeiras quatro canções e publiquei o EP Seu Nome naquele ano, vimos que era bom e que poderíamos seguir musicando outras autoras igualmente esquecidas ou silenciadas”, explica.
Com isso, conta, Maria Valéria Rezende enviou os primeiros poemas de Firmina. Socorro buscou mais alguns na internet e selecionou quatro dentre os disponíveis naquele momento. “Depois, ganhei os livros Úrsula e Cantos à Beira-Mar, do Rafael Balseiro Zin, pesquisador apaixonado da vida e obra de Firmina, que me ampliaram as possibilidades”. Socorro, primeiro musicou “Ela”, “Seu nome”, “Uma tarde em Cumã” e a última estrofe do poema “O meu desejo” e lançou nas plataformas digitais o EP “Seu Nome” ainda para o Mulherio em 2017, com arranjos de Jorge Ribbas para violão. “Foi aí que tivemos a ideia de fazer um projeto mais amplo que Valéria batizou de AvivaVOZ. A escritora Susana Ventura chegou junto e aprofundou a pesquisa. Juntas levantamos cerca de 40 nomes, dos quais selecionei 10 para musicar. Firmina é o primeiro ciclo”, detalha.
Num trabalho dessa dimensão, natural que surjam dificuldades. “Já nem falo de custos na produção de um CD, já me acostumei a bancar meus trabalhos, se preciso. Com este foi igual. O que é mais desafiador é torná-lo conhecido. Assim como aconteceu com Firmina, cuja obra ficou um século totalmente esquecida, pode ser que não se fale desse disco como poderia. Faltam meios para divulgação”, observa.
Socorro Lira não se cansa de destacar a importância de Maria Firmina para a literatura brasileira. “Ela foi ‘somente’ a primeira romancista brasileira, tendo lançado Úrsula antes de qualquer outra mulher. Esse livro de temática abolicionista – sendo Firmina mulher negra, filha de mãe forra – antecede a publicação do poema Navio Negreiro, de Castro Alves, em dez anos. Como educadora criou a primeira (até onde se sabe) escola mista, no Brasil. Foi ignorada pela elite literária da época, formada, principalmente, por homens brancos e ricos e mesmo assim escreveu e publicou, o que foi uma sorte, para estarmos hoje aqui falando a seu respeito. Foi uma romântica e escreveu poemas marcados por iniciativa quando o assunto é amor, paixão, êxtase, romance e silenciamento, em uma sociedade escravocrata, repressora e reprimida. Se ela fez tanto, tendo publicado dois livros, contos e poemas avulsos naquele tempo, o que explica o seu apagamento da História, senão o machismo e a misoginia que persistem até nossos dias?!”, indaga.
A artista Socorro Lira costuma fazer trabalhos temáticos. Tem discos sobre o samba do Rei do Baião, sobre Zé do Norte e também sobre a Amazônia. Mas como surge a definição sobre esses trabalhos temáticos?
– Uma hora me dei conta de que não me basta juntar canções e gravar. É bom ter um motivo, um norte, contar uma história. O Samba do Rei do Baião, que divido com Oswaldinho do Acordeon, e Lua Bonita são discos bem queridos, esse último me rendeu o Prêmio da Música Brasileira em 2012. São discos de repertório não autorais. O Amazônia é metade autoral. Percebo que há quem goste de me ver mais intérprete do que compositora. Talvez pelos mesmos motivos que fazem a escrita, música, a pintura, as pesquisas científicas das mulheres serem menos apreciadas e, muitas vezes, relegadas como se fossem de segunda categoria. Às vezes penso sobre isso – comenta.
Também uma artista autoral com nome já consolidado na MPB, Socorro Lira afirma que nesses trabalhos costuma levar todas as referências que pode reunir. “Desde minha mãe cantando, ao que chegava pelo rádio e ao que pude estudar como autodidata. O que mais me interessa hoje é saber que música é minha forma de estar e me comunicar nesse mundo. Logo, de mexer na nossa maneira de viver, se possível”, enfatiza.
Pergunto como ela se descobriu artista e quando decidiu encarar a música e a literatura como vocações que não podia ignorar. Ela responde, enfática: “Como poeta você deve saber bem disso. A inclinação a gente tem, mas como materializar os sentimentos e pensamentos, as impressões? E mesmo ‘escolher’ um caminho na vida? Como em qualquer área, a vida vai propondo. A gente topa ou não. Talvez”.
Esse “talvez” ajudou Socorro Lira a sair de Brejo do Cruz e encarar o mundo com sua arte. Provavelmente, se em Brejo do Cruz houvesse as mesmas oportunidades que há em outros lugares teria ficado por lá. “A gente sai para ver se acha sentido. Mais do que trabalho e ‘vencer na vida’, para mim era outro sentido que eu queria. Saí por inconformismo. Hoje torço para que ninguém precise mais sair do seu lugar. A diáspora é exigente”, completa.
Socorro Lira é também poeta, e de qualidade. E ela tem uma frase bem original para definir essa vocação: “É preciso fazer certo esforço para não ser poeta, sendo do sertão e do Nordeste, né? Não faz muito tempo que as crianças brincavam dizendo quadrinhas: ‘lua, luinha, me dê pão com farinha pra mim dar à minha gatinha que tá presa da cozinha” (tadinha da gata! Risos)”. Até o momento, publicou três livros de poesia e um conto infantil.
Artista e engajada com os movimentos, como o Mulherio das Letras e outros que movem a cena contemporânea. Antes de ser artista, diz, foi militante de movimentos sociais. “Antes de ser artista, somos cidadãs, cidadãos. O engajamento político para mim é orgânico, natural. Claro que eu preferiria viver num mundo onde as buscas pudessem ir além da sobrevivência, da defesa de direitos, por exemplo. Sou feminista por necessidade de sê-lo. Como não ser a meu favor?! Queria não precisar lutar para que menos da metade na humanidade (formada de homens) considere a outra mais da metade (de mulheres). Queria poder relaxar, sabe? Infelizmente estamos nesse ponto ainda”, lamenta.
E não é fácil ser engajado no momento de recrudescimento dos direitos sociais, político e culturais que vive o Brasil.
– Esse milênio inaugura uma nova era (de Aquário) e um chamado à expansão da consciência sobre o que e quem somos. Rose Marie Muraro falava da Revolução da Consciência. Vejo a garota Greta Thunberg ensinando à velharia em assembleia da ONU e me encho de alegria. Podemos estar na matrix e não ser da matrix. Esse filme de terror que estamos vendo não é real e acabará quando a gente despertar. Isso que ascendeu ao poder no Brasil é a escuridão resistindo à luz. Entretanto, até a treva passar, precisamos defender quem se encontra mais vulnerável nas aldeias, nas comunidades, nas favelas, dentro de casa; e mesmo a natureza de quem somos parte e totalmente dependentes. Precisamos da floresta, de água, do solo, do ar – acrescenta.
Sobre projetos futuros, diz que o ‘Chama’ já está gravado a será lançado em 2020. Integra um projeto tríplice, o ‘Chamamentos’: um livro de Roberto Tranjan, uma exposição de Elifas Andreato e o seu álbum. “É possível que aconteça outro CD do projeto AvivaVOZ em 2020 também; torcendo por aprovação em edital. E sairá um livro, dessa vez um romance, ainda este ano”. Por ora, é isso, sim. Mas sabemos que Socorro Lira sempre nos brindará com obras necessárias e impresdíveis.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal) e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.