Nonato Guedes
Numa conjuntura em que o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, alude de forma recorrente à ditadura, em tom apologético, e forças sociais e políticas lembram com nostalgia o regime dos generais, que castrou líderes e vocações e implantou o terror no Brasil, a boa notícia dada pela revista “Veja”, com base em pesquisa, é que o eco pela volta do autoritarismo, junto à sociedade, continua baixo. Um levantamento realizado pelo Instituto FSB para a revista da Editora Abril mostra que apenas 10% dos brasileiros acham a ditadura a melhor forma de governo. Não obstante, o temor de um golpe que leve a um regime autoritário não é nada desprezível – cerca de 40% acreditam que exista possibilidade hoje no país.
Na “Carta ao Leitor” da sua nova edição, “Veja” tata das variantes da questão em pauta, lembrando que o espectro do autoritarismo tem adeptos aqui e em várias partes do planeta, como Venezuela, Turquia e Bolívia, onde retrocessos espantosos vêm colocando em xeque as liberdades individuais. O caso do Brasil de hoje é definido por “Veja” como um momento de confronto às instituições, como se os limites estivessem sendo testados ou como se houvesse uma agenda que sob qualquer pretexto pudesse ser implementada imediatamente para garantir “a ordem e o progresso”, a desculpa mais empregada por governos de exceção, totalitários, para justificar o desprezo pelo estado democrático de direito. O editorial da revista fecha reafirmando seu compromisso com o regime democrático e relembrando as palavras bem-humoradas do célebre primeiro-ministro inglês Winston Churchill: “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”.
“Veja” relembra menções feitas por figuras governistas expressivas a uma suposta necessidade de retorno do famigerado AI-5, o Ato Institucional Número Cinco, que promoveu cassações e punições de variados tipos. O AI-5, assinado durante a ditadura militar, fechou o Congresso Nacional, resultou na morte de pessoas que eram encaradas de algum modo pelo regime como inimigas do Brasil – caso, por exemplo, do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado nas dependências do Doi-Codi de São Paulo. Nas hostes de apoio ao presidente Bolsonaro, inclusive nas que têm cargo administrativo, referências explícitas a um suposto fechamento do Supremo Tribunal Federal são frequentes, invocando as Forças Armadas para cometer tal atrocidade. Em paralelo, o presidente também não ajuda a afastar o clima de preocupação quando faz seguidos ataques à imprensa, “demonstrando e incentivando descaso por uma instituição que, claramente, é um dos pilares da democracia”, prossegue o editorial.
De acordo com a avaliação de “Veja”, há um cenário em que muitos manifestaram nostalgia de um passado que não viveram. O contraponto favorável é o repúdio de parcelas expressivas ao totalitarismo deletério. Ao jogar luz sobre o assunto, a revista manifestou a sua expectativa de que as autoridades competentes interpretem os dados da pesquisa como uma grande repulsa da população a um retrocesso desse nível. O editorialista destaca que se vive o ano de 2019 e que a defesa do espectro ditatorial voltou por motivos diversos. Em toda e qualquer circunstância, nenhum dos motivos invocados respalda a perspectiva de que o Brasil possa a conviver com uma situação esdrúxula. Ainda estão muito recentes na memória nacional os efeitos traumáticos pela ação dos que tomaram o poder em março de 1964, destituindo pela força o governo democrático de João Goulart.
O flerte do bolsonarismo com a ditadura é alarmante, extremamente grave, mas o que alivia em parte a sociedade brasileira é a constatação de que a democracia, uma vez reconquistada, está praticamente enraizada no imaginário coletivo, sendo certo que reações bastante nítidas se farão ouvir quando esses acenos voltarem à tona. Ou seja, a impressão que se tem, desdobrando os números percentuais da pesquisa do Instituto FSB, é que a sociedade brasileira desenvolveu com muita propriedade anticorpos para não se tornar refém de um regime que nega as suas liberdades e castra as suas mais plenas aspirações.
É claro que a narrativa pela volta da ditadura encontra espaços diante do sentimento generalizado de descrença que envolve a população quanto a reformas estruturais indispensáveis ao desenvolvimento do país, em ambiente democrático, de vigência de liberdades públicas. Mas, em paralelo, a tomada de consciência que se sente pulsando na sociedade dá alento e faz com que acreditemos que a luta pela democracia tornou-se compromisso basilar das inúmeras tendências desenhadas no corpo social brasileiro.