Nonato Guedes
Como era burra a ditadura militar implantada no Brasil em 1964 e que vigorou até 1985 – cerca de 21 anos de longa noite das trevas. Hoje, transcorrem 51 anos do Ato Institucional Número Cinco que cassava mandatos, suspendia garantias constitucionais, oficializava a censura à imprensa e aos meios artísticos-culturais e vendava os olhos para a tortura, a desumanidade que rondava os porões do regime. A evocação do AI-5, de triste memória, traz à tona episódios grotescos que seriam cômicos se não fossem trágicos. Como o da chamada “feijoada subversiva” em torno de Miguel Arraes, o líder que resistiu no Palácio do Campo das Princesas, no Recife, até ser deposto pela linha dura militar e levado para Fernando de Noronha, onde ganhou o exílio, na Argélia. A narrativa do golpe de 64 é também a narrativa da paranoia dos militares.
Extraio da minha coleção de ouro de “Caros Amigos” este registro bastante emblemático daqueles velhos tempos, velhos dias. “Em maio de 1965, quando o governo chamava de “terrorismo cultural” toda manifestação artística e intelectual que criticasse o regime e instaurava inquérito policial-militar a torto e a direito, aconteceu um bem original, o “IPM da Feijoada”. Ênio Silveira, dono da Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, lançava livros de esquerda. Certo dia, ofereceu uma feijoada ao ex-governador pernambucano Miguel Arraes, cassado de primeira hora. Arraes havia ficado preso por quase um ano e acabava de ser posto em liberdade, em maio de 1965.
Dias depois da feijoada, baixou a polícia, prendeu o anfitrião, duas empregadas e o porteiro do prédio. A prisão provocou um manifesto assinado por cerca de mol pessoas ligadas à produção cultural, artistas e intelectuais, não necessariamente de esquerda. Até o chefe do golpe de Estado e o primeiro presidente do regime militar, general Castelo Branco, ficou irritado com o “IPM da Feijoada”. Escreveu ao general Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar, uma carta que entre outras críticas dizia: “Por que a prisão do Ênio? Só para depor? A repercussão é contrária a nós, em grande escala. O resultado está sendo absolutamente negativo (…) Há como que uma preocupação de mostrar ‘que se pode prender’. Isso nos rebaixa (…) Apreensão de livros. Nunca se fez isso no Brasil. Só de alguns (alguns) livros imorais. Os resultados são os piores possíveis contra nós. É mesmo um terror cultural”.
Até então, a Polícia Federal havia apreendido cerva de 17.000 volumes de 35 obras consideradas subversivas. Ênio Silveira ainda seria preso por duas vezes, numa delas tornado incomunicável por 29 dias. Um outro relato sobre os absurdos da Era do AI-5 é sobre a ex-vereadora e deputada estadual Elza Correia, filha do líder comunista Manuel Jacinto. Tinha 17 anos em primeiro de abril de 1964 e morava em Londrina, no norte do Paraná. Em depoimento de maio de 1999, relembrou a visita que a família recebeu logo após o golpe militar-civil. Seu pai tentou escapulir pelos fundos, mas não deu tempo; levaram-no de pijama. Além do mais, procuravam livros como provas da “subversão”.
Conta Elza: “Essa casa era simples, não havia lugar para os livros, estavam numas caixas. Reviraram tudo, levaram as caixas. No meio tinha literatura infantil. Na relação, eles botavam tudo “subversivo”. Sociologia, antropologia, tudo quanto era “gia” era subversivo. “Também enterrávamos, naquelas latas de 20 litros. À noite, minha avó com a lanterna, a gente cavava, botava tampa na lata, amarrava com plástico, botava um vaso de planta em cima. Alguns a gente perdia por causa da umidade. Mas a gente falava que tinha uma plantação de livros no quintal”. A ojeriza dos militares à intelectualidade era absolutamente compreensível. Na média, oficiais golpistas não tinham intimidade com livros ou leituras. Eram alienados, incapazes de distinguir o joio do trigo. Por isso, incorriam em episódios ridículos que, uma vez tornados públicos, comprometiam a reputação das Forças Armadas, já danificada pela quartelada de março/abril de 1964.
Os golpistas se esforçavam, a todo custo, em legalizar a ilegalidade. Precisavam disso para obter respaldo internacional, já que a decantada “revolução” que se deflagrou no Brasil era ironizada nos grandes veículos de imprensa e em diferentes fóruns influentes no exterior. Mas a burrice era tamanha que nos episódios de censura prévia à imprensa, os algozes escalados pela repressão levavam um “olé” de jornalistas – repórteres e editores, que recorriam a metáforas ou a expedientes subliminares para driblar a censura institucionalizada. Visto de longe, o regime de 64 era um regime caricato, com aqueles generais de óculos escuros que disfarçavam a burrice e a estupidez da quartelada.