Nonato Guedes
“O Natal deste ano nos traz à mente os atuais Herodes que estão dizimando nossas crianças e jovens”, afirma o frei Leonardo Boff em artigo publicado no site “Congresso em Foco”. Boff recorda que entre 2007 e 2019, 57 crianças e jovens até 14 anos foram mortos no Brasil por balas perdidas, em ações policiais. E somente neste ano, no Rio de Janeiro, seis crianças e dezenove adolescentes perderam a vida em ações policiais, segundo informa a Plataforma Fogo Cruzado. Houve na região metropolitana do Rio 6.058 tiroteios com armas de fogo, com 2.301 pessoas baleadas, das quais 1.213 foram mortas e 1.088 gravemente feridas.
O caso mais clamoroso, como reconstitui Boff, foi da criança de oito anos Agatha Félix, morta por disparo de fuzil pelas costas dentro de uma Kombi quando ia para casa com sua mãe. Diz o teólogo: “Seus nomes merecem ser referidos. Embora com poucos anos a mais, tiveram o mesmo destino dos mortos por Herodes: Kauan Peixoto, 12 anos, KauãRozário 11 anos, Kauê dos Santos, 12 anos,Agatha Félix, 8 anos, Ketellen Gomes, 5 anos. Diz o frade que o governador do Rio, Wilson Witzel, com sua polícia feroz, vem sendo acusado de crime contra a humanidade, pois manda atacar as comunidades com helicópteros e drones, aterrorizando a população. O prefeito Marcelo Crivella confessou que nas 436 escolas instaladas nas comunidades, devido às ações policiais, as crianças perderam 7000 horas de aula.
E acrescenta: “Junto com a mãe de Agatha Félix, Vanessa Francisco Sales que carregava no enterro a boneca da Mônica de que sua filhinha tanto gostava, fazem-se ouvir as mesmas vozes que a Raquel bíblica: As mães do Morro do Alemão, do Jacarezinho, da Chatuba de Mesquita, da Vila Moretti e Bangu, do Complexo do Chapadão, de Duque de Caxias, da Vila Cruzeiro no Complexo da Penha, de Maricá. Escutemos seus lamentos: “Ouvem-se muitas vozes, muito choro e muitos gemidos. As mães choram seus queridos, mortos por balas perdidas; não querem consolar-se porque perderam suas crianças para sempre. Pedem uma resposta que não lhes vem de nenhuma instância. Entre lágrimas e muitas lamentações, suplicam: parem de matar nossas crianças. Parem, pelo amor de Deus. Queremos elas vivas. Queremos justiça”.
Frei Leonardo Boff assinala: “Este é o contexto do Natal de 2019, agravado por uma política oficial que usa os meios perversos da mentira, do fake News, de muita raiva e de ódio visceral. Jesus nasceu pobre e pobre viveu a vida inteira. E surge um presidente que tem frequentemente Jesus em seus lábios e não em seu coração, porque difunde ofensas a homoafetivos, a negros, a indígenas, a quilombolas e a mulheres. Diz abertamente que não gosta de pobres, quer dizer, não gosta daqueles que Jesus disse: “bem-aventurados os pobres” e que os chamou “meus irmãos e irmãs menores” e que no ocaso da vida serão nossos juízes”. Não gostar dos pobres significa que não quer governar para as maiorias dos brasileiros, que são pobres e até miseráveis, para os quais deveria primeiramente governar e cuidá-los”.
Boff diz mais: “Apesar disso tudo, há que se celebrar o Natal. Faz escuro mas festejamos a humanidade e a jovialidade de nosso Deus. Ele se fez criança indefesa. Que felicidade em saber que seremos julgados por uma criança que apenas quer brincar, receber e dar carinho e amor. Que o Natal nos conceda um pouco daquela luz que vem da Estrela que encheu de alegria os pastores dos campos de Belém e que orientou os sábios-magos para a gruta. “Sua luz ilumina cada pessoa que vem a este mundo” (Jo, 1,9), você e eu, todos, não só os batizados. Feliz Natal”.
Para Boff, o Natal sempre possui o seu idílio. “Não pode haver tristeza quando nasce a vida, especialmente quando vem ao mundo o pueraeternus, o Divino Infante, Jesus. Há anjos que cantam, a estrela de Belém que brilha, os pastores que velam à noite o seu rebanho. Mas lá estão principalmente Maria, o bom José e o Menino deitado numa manjedoura, “porque não havia lugar para eles na hospedaria”. E eis que apareceram também, vindos do Oriente, uns sábios, chamados magos, que abriram seus cofres e ofereceram ouro, incenso e mirra, símbolos misteriosos. Mas havia também um rei mau, Herodes, crudelíssimo a ponto de dizimar toda sua família. Ouviu que nascera na cidade de Davi, Belém, um menino que seria o Salvador. Temendo perder o trono, mandou matar em Belém e arredores todos os meninos de dois anos para baixo. Os textos sagrados conservam um lamento dos mais pungentes de todo o Novo Testamento: “Em Ramá se ouviu uma voz, muito choro e muito gemido. É Raquel que chora os filhos e não quer ser consolada porque os perdeu” (Evangelista Mateus 2,18).