Nonato Guedes
Fui visitar, em Cajazeiras, juntamente com o mano Lenilson Guedes e o cunhado Antônio Pedro, o monsenhor Gervásio Fernandes de Queiroga, o eterno Padre Gervásio, como ele mesmo se atribui. Um dos talentos mais privilegiados da Igreja Católica, perito em Direito Canônico que por mais de duas décadas assessorou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Participante do Concílio Vaticano II, que promoveu uma das inúmeras revoluções da cronologia da Igreja em todo o mundo, com reflexos marcantes na América Latina, Gervásio bateu de frente, em Cajazeiras, com forças influentes, poderosas, alinhadas com o stablishment derivado do golpe militar de 1964. Dono de uma visão crítica que o torna inconformista permanente, Gervásio foi secretário particular de Dom Zacarias Rolim de Moura, a figura mais importante da Diocese de Cajazeiras, que faleceu em 1992, aos 77 anos de idade.
Foi para a figura exponencial de Dom Zacarias que convergiu naturalmente a conversa mantida com Padre Gervásio, numa manhã de domingo, em Cajazeiras. Tendo sido bispo da diocese de Cajazeiras por mais de 37 anos, Dom Zacarias gerou em torno de si a aura de prelado rico, reacionário, orgulhoso. Tudo balela, falsa impressão, decorrente até de mentiras (hoje se diria fake News) espalhadas para estigmatizar um religioso que morreu pobre e humilde, afirma, enfático, Padre Gervásio, desfiando um rosário de informações sobre o estilo franciscano que, para além das aparências, pontuava o dia a dia de dom Zacarias Rolim de Moura. Um bispo que despachava no “Palácio Episcopal” – que não tinha nada de palácio (havia mais circunstância do que pompa, como testemunhei quando trabalhei como repórter-entrevistador na rádio Alto Piranhas, no período em que pertencia à diocese). Talvez o porte imponente de dom Zacarias e o sobrenome ilustre, associado a famílias tradicionais com ramificações pela terra do Padre Inácio de Souza Rolim, contribuíssem para referenciá-lo como expressão de certas elites que pontificavam nos cenários, sobretudo nas décadas de 60, 70 e subsequentes.
Gervásio desceu a minúcias sobre o estado de pobreza franciscana ou de vida monástica porque passou dom Zacarias, sem que disso tivesse ciência ou notícia o grande público. Para este, o estereótipo de dom Zacarias estava refletido no porte aristocrático, nos traços da genealogia familiar e na suposta riqueza da diocese de Cajazeiras, dona de conjunto residencial denominado “Vila do Bispo” e de outros próprios que, na verdade, sediaram empreendimentos de vulto que o bispo legou à comunidade sertaneja como um todo, focados na difusão do ensino religioso propagado em ambientes como o Seminário, as Igrejas ou em vertentes como a Faculdade de Filosofia. Para Gervásio, que nunca gosta de falar de si, das suas façanhas e dos dotes intelectuais, bem como do relevante trabalho pastoral-social que imprimiu à sua trajetória, dom Zacarias conduziu-se com serenidade e habilidade em meio a correntes antagônicas que se entredevoravam nas colunas do Episcopado brasileiro como um todo, dividido pela imprensa entre facções “progressista” e “conservadora”.
Sobre essa atuação habilidosa de dom Zacarias, sou testemunha e dou fé. Reservo para ele o epíteto de “algodão entre cristais”, pelo papel conciliador que esgotava ao máximo durante as tensões que explodiam em reuniões da Província Eclesiástica de Cajazeiras, onde afloravam, em paralelo, ressentimentos pessoais, ambições de poder ocultas ou disfarçadas. A Igreja como um todo no Brasil era microcosmo das contradições políticas e sociais que agitaram fases decisivas da história do país em menos de meio século. As crises institucionais que se alternavam no microcosmo do poder político transplantavam-se para o conjunto da sociedade por osmose e a elas não poderia ficar indiferente uma instituição como a Igreja Católica, que adquiriu peso extraordinário quando se fez voz dos que não tinham voz ou dos que estavam silenciados pelo poder das baionetas. A Igreja cumpriu função de substituta de partidos políticos e de outros canais institucionais de poder estratificados na sociedade, numa época de forte maniqueísmo ideológico, a cuja influência nenhum segmento, por mais neutro que pretendesse, escapava.
Recordo “imbróglio” lamentável verificado, no período de dom Zacarias, envolvendo padres italianos que vieram para o Brasil e estabeleceram-se em Cajazeiras, interessados em contribuir para mudanças estruturais num Nordeste pobre, emasculado na sua autonomia econômica e sufocado pelo eixo Sul com seu poço de vaidades e arrogâncias das elites políticas e econômicas. Os padres italianos insurgiram-se como contraponto ao comodismo do clero tradicional-conservador nos domínios de Cajazeiras. Foram tão pressionados por grupos influentes, a partir dos proprietários rurais e urbanos, que acabaram voltando para a Itália amargando uma “expulsão branca”, desalojados do convívio com as comunidades pobres do Sertão a que atendiam. Quando ainda estavam atuando, dona Íracles Pires, teatróloga e comunicadora da Rádio Alto Piranhas, foi a dom Zacarias para uma audiência e levou-me como acompanhante, por amizade e coleguismo. Fui testemunha muda do seguinte diálogo que sintetizava a personalidade moderada de dom Zacarias:
Ica – Dom Zacarias, o senhor tem que tirar do ar esses padres italianos. Eles ficam jogando trabalhadores contra proprietários, incentivando a luta de classes, o comunismo…
Dom Zacarias – Dona Ica, o Padre Levy fala na minha rádio?
Ica – Sim, dom Zacarias.
Dom Zacarias – Então, deixe os italianos falarem também….
Era assim a figura que Padre Gervásio quer resgatar. Ninguém me contou, eu vi!