Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com
Um livro que é uma espécie de manifesto poético em várias línguas, bem no estilo dos modernistas. Assim pode ser definido “MalangueMalanga – 30 poemas para ler no exílio”, quinto lançamento literário de Wilson Alves-Bezrra, e o terceiro de poemas. A obra chega após premiado “Vertigens” e do work in progress“O pau do Brasil”. É um projeto de poemas em prosa em línguas misturadas (sobretudo português, inglês e espanhol, em distintas configurações) tematizando o exílio na contemporaneidade. A ideia, segundo o autor, é inverter a viagem eufórica dos modernistas.
O livro, curiosamente, tem uma dupla origem: o título vem de um poema do livro “Vertigens”, que mistura o francês e o português, escrito em 2011. “Mas a ideia do livro é posterior: interessava-me colocar em cena a perturbação da língua materna pela língua estrangeira que ocorre, muitas vezes, quando o sujeito está fora de seu país. Como a língua do outro pode invadir-lhe. Então, a certa altura, pensei que era possível escrever um livro a partir desse efeito. Assim surgiu ‘MalangueMalanga’”, explica Wilson Alves-Bezerra, escritor, crítico literário, tradutor e professor do Departamento de Letras da UFSCar, onde atua na graduação em Letras e na pós-graduação em Estudos de Literatura.
O poema em prosa acompanha o autor desde sua reestreia como poeta, com as “Vertigens”, depois de dezessete anos sem publicar poesia. “Eu já havia publicado, intuitivamente, no fim dos anos noventa, um livro que trazia alguns textos em prosa, que ainda não eram contos, e tampouco eram poesia. Foi quando uma importante leitora, Iná Camargo Costa, me disse eu que era da família dos poetas em prosa, mas que precisaria conhecer meus parentes: e ela me apresentou os ‘Pequenos poemas em prosa’, de Charles Baudelaire. Depois, por conta própria, cheguei ao ‘Finnegans Wake’, do James Joyce, que vivia já a condição do exílio e do fluxo incessante de pessoas e línguas na Europa da primeira metade do século 20, e que escreveu aquele livro misturando 64 idiomas sobre a base do inglês. Meu ‘MalangueMalanga’ é fruto da minha própria experiência com a linguagem, uma retomada, via poemas em prosa, do vórtice caudaloso ante o estrangeiro”, define.
Para ele, globalização, exílio e migração são marcas de nosso tempo, como foram de outros tempos. Neste sentido, o livro quer ser um manifesto pelo ponto de vista dos expatriados e excluídos da contemporaneidade. Contrariamente ao que se poderia pensar, não é um livro intelectualizado e excludente, para o leitor que conhece todas as línguas; muito pelo contrário, é um livro que nos coloca na posição da falta, transbordados por resíduos.
Wilson Alves-Bezerra diz que o modernismo brasileiro e as vanguardas latino-americanas traziam, em muitos poetas, uma alma cosmopolita; porém numa chave muito específica: a do turista endinheirado que viaja em primeira classe. “Os Vinte poemas para ler no bonde”, do argentino Oliverio Girondo, traziam uma verdadeira volta ao mundo, mas sempre da perspectiva da riqueza, no entendimento de Wilson. “Oswald de Andrade, por exemplo, num poema chamado ‘Balada do Esplanada’, se apresentava como o menestrel do hotel de luxo do centro de São Paulo, onde certamente bem poucos podiam se hospedar. Eu retomo o espírito de inquietação do modernismo, porém numa chave menos otimista e a partir de outro lugar social”, conceitua.
Mas que características do Modernismo podem ser encontradas na obra?
– A exploração de uma outra linguagem: a da oralidade, que retoma com gosto uma dicção que seja possibilidade e vertigem, e que não se deixa encarcerar por nenhuma gramática. Também uma operação com a literatura canônica que não seja reverente: posso reescrever trechos do ‘Cântico dos Cânticos’, do ‘Poeta em Nova Iorque’, de García Lorca, de Poe e Ginsberg, porque fazemos parte de uma mesma fraternidade de almas perturbadas – observa.
Wilson Alves-Bezerra tem lançado livros onde questiona ou retrata a nova ordem política e social no Brasil e no mundo. Ele entende que isso, de certa forma, está presente neste projeto também. Assim, a escolha dessa linguagem e dessa perspectiva – a dos migrantes, dos expatriados, dos marginalizados – é uma tomada de posição. “Há muitas formas de falar da globalização: a euforia dos neoliberais endinheirados, a crítica feita pelos nacionalismos xenófobos, mas também esta dimensão que trago com ‘MalangueMalanga’ – a das vivências singulares”, enfatiza.
Conforme sua avaliação, a arte é uma linguagem poderosa para fazer frente aos discursos estabelecidos. “A arte tem poder de desarmar o bloco rígido dos consensos, despertar a pessoa da sonolência. Porém, cabe a cada artista fazer ou não essa opção. O imperativo da crítica deve partir de cada consciência e não de um compromisso imposto desde fora, sob o risco de se criarem novos dogmas quanto ao papel de quem se dedica à arte”, comenta ao falar sobre o engajamento político do escritor.
Uma característica inovadora dessa obra é que ela sai por um pool de 15 cartoneras em nove países de várias partes do mundo, um grande presente para o autor. O movimento das editoras cartoneras – cooperativas que trabalham com papelão reciclado para as capas e têm processos de produção artesanais – é uma das novidades editoriais mais subversivas da virada do século, afirma.
– Com o passar dos anos, as cartoneras – que têm um alcance de circulação circunscrito a seu entorno – passaram a se articular cada vez mais. Em meu caso, sabia de uma edição de 2015 dos poemas de Douglas Diegues, em portunhol, capitaneada pela Vento Norte Cartonero, do editor Fernando Villarraga. Propus ao Fernando que editasse meu livro com uma nova parceria com cartoneras de outros países: ele acolheu a proposta com muita generosidade e ofereceu ao livro a editoras parceiras. Assim, tenho a felicidade de fazer parte desse lançamento que está acontecendo agora em três continentes – África, América Latina e Europa – tendo os livros com padrões e técnicas de capas muito diversos, e processos de produção absolutamente singulares. Um privilégio, claro! – comemora.
Para Wilson Alves-Bezerra, em momentos de exceção, como o que vivemos no Brasil, a arte ganha outra dimensão, a da resistência. “Uma sociedade embrutecida se dedica menos a frui-la do que a atacá-la: há tempos não se via artistas, jornalistas, professores e intelectuais tão demonizados, tantos veículos de cultura fechados, tantos meios hegemônicos dificultando a circulação dos objetos artísticos críticos. Por outro lado, há tempos não se viam tantos canais alternativos se abrindo, tantos movimentos de resistência, tantas novas formas de se fazer ouvir. A arte funciona, nesse sentido, como a água represada: podem-se construir barragens, mas ela sempre encontra caminhos alternativos, às gotas, aos jorros, aos borbotões, ou em trombas mais contundentes, não importa. O caso é que não há como detê-la”, completa.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal) e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.