Linaldo Guedes
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Durante minha adolescência, enquanto rabiscava meus primeiros e imberbes versos, costumava ler textos sobre literatura e o fazer poético. “Cartas a um jovem poeta”, do Rainer Maria Rilke, era meu livro de cabeceira. Mas também me perdia em páginas de autores como Affonso Romano de Sant’Anna, Fernando Paixão, Sartre e Schopenhauer, entre outros – autores que me faziam tentar compreender o mister poético e literário para o qual queria me aventurar. Sem falar em Fernando Pessoa e sua antologia de heterônimos que até hoje se impõe em minha cabeceira.
Ter em mãos o livro “Mostruário Persa”, de Letícia Palmeira (Penalux, 2019) é voltar a esse tempo. É voltar a ler prosa para entender a poesia, para buscar o poeta que às vezes se desgarra de mim. De refletir sobre o fazer literário da forma mais poética possível. De compreender porque querer ser poeta, num mundo cada vez mais agressivo e individualista.
“Mostruário Persa” é um livro de reflexões, de sacadas, de provocações poéticas através da prosa. No estilo inconfundível de Letícia Palmeira, uma das autoras contemporâneas que mais leio, que mais me identifico. Enquanto leitor, costumamos gostar de navegar pelas páginas dos autores e autoras que mais nos identificamos. E eu sou devoto da prosa de Letícia.
Há dezenas de sentenças literárias nas páginas de “Mostruário Persa” que nos levam a refletir sobre o porque de escrevermos. “É preciso que haja espaço entre isto que nomeio arte e aquilo que nomeiam vida”, diz logo no primeiro texto. Como não identificar Fernando Pessoa nessa reflexão? Não por acaso Alberto Caeiro assina a epígrafe do livro. E completa Letícia: “Escrevo somente o que não posso viver dada a minha limitada existência”.
Letícia, aliás, é prosadora, para o leitor menos atento. Por isso, em outro texto, deixa claro que não é poeta e nem se atreve a inovar verso em sílaba ou flauta redondilha: “a palavra toma de assalto meu ato trágico e perco a voz no palco”. Faço questão de dizer que ele não é poeta, mas ressalto que aqui falo do ofício de autora. Em um tempo em que todo mundo que escreve quer ser tudo ao mesmo tempo agora, Letícia restringe seu espaço, embora nunca tenha deixado de ser poeta em sua prosa.
Seu leitor sabe disso. O que ele não sabe, conforme palavras de Letícia, é se é estranho ou esquisito o que é dito ou se desaprendeu a arte da decodificação. Afinal, como decodificar que o escritor que se sabe imperfeito, cogita, conversa com gente comum, sabe dos clássicos, mas não se delimita ao conjunto da produção? Sim, Letícia sabe que escritor de verdade não vive encastelado em seu escritório, sem atrever o mundo lá fora. Afinal, não vivemos mais o tempo da idealização pura e simples. Não se definir como escritor não é mera modéstia. É distração. Ao contrário do enfadonho escritor que vive a contar palavras.
O ideal de quem escreve continua a ser o belo, isso desde os gregos antigos. Com Letícia também. Mas nela, o belo vem para lhe substantivar, com amplas janelas, noites tranquilas e a poética verbal dos tagarelas, “pois sou lasciva menina ingênua que chora em únicas lágrimas o poema por hora inexistente”.
A poética de Letícia não vem de Rimbaud. Mas de Fernando Pessoa, já disse. Como nesse trecho: “Sou escritor de livros e crio o que do lixo se esvai. Na verdade, invento misérias para alegrar o triste”.
“Mostruário Persa” é um livro para ser lido entre um gole e outro de café. Para mergulhar nas reflexões de Letícia Palmeira, que gosta de assombrar-se e de ser doente de amor e vadia, coisas de quem sabe que a vida é o que ocorre entre uma sala de estar e a mesa da cozinha. A literatura de Letícia vai além desse limite. Ela transita por todos os cômodos da prosa, puxa a poesia para um bate-papo com dona filosofia. E vai navegando mares já navegados. Mas com uma embarcação que inunda oceanos com seus mostruários leticianos.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal) e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.