Kubitschek Pinheiro
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Muitíssimo amor por Federico Fellini, que eu conheci ainda garoto, sem saber que ele era Fellini. E, no entanto, o cineasta segue driblando todas tentativas de explicação sobre sua arte, pelo simples fato de que o cinema, o seu cinema é abrangente, épico, fantástico, com o melhor elenco de personagens do mundo. Amanhã ele faria cem anos. Amanhã ele fará cem anos.
Quando eu digo que já o conhecera desde pequeno, isso reflete diretamente na minha mãe e no meu pai. Minha mãe igual a mãe de Buñel, me levava para milhares de velórios, em cenas tenebrosas noite a dentro, ao ver filhos, parentes e curiosos agarrados aos cadáveres, enquanto outros diziam horrores com Deus por aquela morte. A maioria tomava café e espiava a mobília do morto. Debaixo dos caixões, carvão, água e gelo.
O meu pai, porque ele havia trabalhado com vários cineastas. Não é mentira. Meu pai era uma espécie de surrealismo prêt-à-porter, mais ilimitado do que esclareço, numa tentativa de compreensão do meu adorável leitor. Ora, quem conheceu meu pai, sabe que ele era um ator e todo bom ator é um “crápula”. Presenciei as cenas mais emocionantes de um cinema chamado Sagrada Família, onde muitos se agregavam, do meu Padim Fuenga a Dona Celina, com seu cachimbo de ouro.
Explico. “Felliniano”, de certo modo, não é aquele que gosta dos filmes de Fellini. O cineasta é autorreferente ao bom exagero, do delírio e ao absurdo, das marcas registradas. Li que o fotógrafo britânico David Bailey (a inspiração para o protagonista do Blow up de Antonioni) disse: “Gosto de Visconti porque ele me sufoca de bom gosto, e de Fellini porque me sufoca de mau gosto”.
Não expliquei ainda. O fato de eu ter nascido numa cidade do interior, você passa a viver a saga dos outros, que são formatadas em enquadramentos cinematográficos, bem assim, a olho nu. Jovens que casavam na “marra”, a arte de meter a colher em briga de marido e mulher; a moça que foi deflorada, ou o corno que escuta em alto volume “Você sabe o que ter um amor meu senhor e loucura por uma mulher e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de outro qualquer”. Meu tio Zé Vieira era primo de Lupicínio Rodrigues.
A empregada doméstica era ( ou é) violentada pelo patrão. A bodega de João Menino e os casais dançando bolero, nossos versos são banais no Jatobá Clube. Tudo isso junto e misturado é um retrato de que os personagens de Fellini estavam ali no sertão de mim. O avanço da coisa sexual veio com as profecias de Nelson Rodrigues. Aí é outro gozo.
Acho que ainda não expliquei. Já morava aqui nos trópicos e, ao ver as cenas repetidas, porém sofisticadas, as noites nos cabarés com o primo Irapuan, fui entender que na cidade baixa, eram noites de Cabiria. Onde houver uma puta de outra esquina haverá a lembrança de Giulietta Masina, cuja cara era o coração de Jesus. #Caetano. Ela fará cem anos em fevereiro do ano que vem.
Vou rever os filmes de Fellini nesse Brasil bacurau tão abrangente para ver se isso me ajuda a compreender a passagem desse homem, que nos remete ao neorrealismo, autor extremamente pessoal, que o mantinha em seu platô de diversas maneiras e sensações permanentes: entre certo e o errado de Amarcord, até chegar ao país do carnaval, com milhares de personagens fellinianos nas tribos do catolicismo, do hedonismo e a consciência imoral, nunca ilegal de uma cultura popular e sofisticação estética, tradicional e vanguarda. Isso era Fellini, mas La Nave Vá não o levou daqui.
Quando eu disse que o conhecia desde criança, é que no começo, ao rever os filmes, identifico outros personagens que estão na minha rua, na minha calçada, em todos os sinais fechados entre celulares e catotas, deitados em berços esplêndidos.
De Tigido flatulencio a Antônio Tavares, da negra Aury a professora Ilka Holanda; o doido Honório, Ana Palpíta, Severina Cambista, doutor Oseas e o pobretão Geraldim, que entra nesse filme metendo a faca no bucho de Jesus gay da Porta dos fundos.
Meu Deus, que coisa fofa, o Fellini!