Nonato Guedes
Por cerca de três décadas, dom José Maria Pires, natural de Córregos, Minas Gerais, pontificou de forma marcante na Arquidiocese da Paraíba como arcebispo comprometido com as causas sociais e a defesa dos oprimidos, afrontando e denunciando as arbitrariedades do regime militar que legou a longa noite das trevas. Contrariou interesses de poderosos, sofreu discriminação racial por ser assumidamente negro e teve cancelado o recebimento do título de Cidadão Paraibano por deputados estaduais que foram pressionados por emissários da ditadura. Em meio a todo esse fogo cruzado, dom José nunca deixou de manter abertos os canais de interlocução com poderosos de plantão, ainda que resguardando a inteireza de suas posições e convicções, geralmente expostas de forma veemente, vigorosa.
Descobre-se, agora, que nem a memória do pastor querido por paraibanos e paraibanas foi poupada de conspurcação pelo desvario da organização criminosa, “Orcrim”, que, conforme o Ministério Público, assaltou os cofres públicos e desviou recursos da Saúde e Educação em conluio com organizações sociais regiamente contratadas às expensas do erário com a condição de partilharem propinas a agentes subordinados ao ex-governador Ricardo Coutinho, do PSB. Explico o episódio: o ex-governador denominou de “Dom José Maria Pires” o hospital metropolitano de Santa Rita, na Grande João Pessoa, que é referência local e regional, pretextando ser uma justa homenagem ao prelado que atuava em sintonia fina com dom Helder Câmara, então arcebispo de Olinda e Recife. Para além das ditas homenagens, o hospital Dom José foi utilizado como “biombo” para penalizar o atendimento a pacientes pobres e sem recursos e, no reverso da medalha, privilegiar afilhados de deputados e de outros políticos da base de apoio a Coutinho, também com problemas de saúde. Era o “fura-fila”, pelo que consta nas delações vazadas ao conhecimento da opinião pública.
Tudo com o consentimento do ex-governador, que incorporou a alcunha de “Ricardinho fura-fila”, na revanche indignada das pessoas do povo diante de tamanha desfaçatez e da ignomínia deslavada. Se havia, da parte de Coutinho, como ele alardeava, manifestação de apreço, admiração e reconhecimento pelo trabalho edificante empreendido por dom José, tudo isso esfumaçou-se, escafedeu-se. Chegamos a esse ponto na história política e administrativa da Paraíba? Sim, infelizmente chegamos. E por obra de quem se dizia arauto da ética, da moralidade, cultor da transparência e executor de uma gestão focada na atenção a quem mais precisa do poder público. Ricardo não tinha o direito de fazer isso, de patrocinar tamanho escárnio, o que só confirma as suspeitas de que o poder tornou-o um celerado, desprovido de princípios e até de ideologias que expendia na mídia. Pantomima pura!
Ainda vai levar um tempo, talvez muito tempo, para que a Paraíba se recupere da devastação moral que contaminou a administração pública, destruiu a qualidade de obras e serviços essenciais e trouxe à luz escândalos de tráfico de influência, de recebimento e pagamento de propinas, de desperdício pelo ralo do suado dinheiro público, nutrido a duras penas com a contribuição imposta a cidadãos que jamais passaram de um número na concepção tacanha e ao mesmo tempo sinistra dos donos do “pudê” de plantão. Ressalte-se que todos esses fatos compõem o enredo da “Operação Calvário”, desencadeada pelo Ministério Público e Gaecco e têm estarrecido a opinião pública a cada, sobressaltando a todos pelo elevado teor de perversidade e falta de espírito público.
Pessoalmente, eu admirava dom José ainda quando militava na imprensa na minha cidade natal, Cajazeiras, onde obtive régua e compasso para deslanchar no jornalismo da Paraíba e além-fronteiras. Chegado a João Pessoa, em 1978, para atuar no jornal “Correio da Paraíba” e na rádio “Correio”, minha primeira pauta dada pelo chefe de reportagem Júlio Santana foi entrevistar dom José. Com o reforço do ex-deputado e meu amigo João Bosco Braga Barreto, consegui acesso a dom José que também me facultou espaço para linha direta em situações de emergência, franqueando-me números dos seus telefones. Construímos, então, uma relação que me marcou profundamente – pela densidade intelectual de dom José, pela sua capacidade de conciliar o múnus pastoral com a denúncia, numa conjuntura em que partidos de oposição estavam interditados e vivíamos uma democracia consentida ou tolerada pelos gendarmes tupiniquins, como se estivessem concedendo uma dádiva. Dom José não merecia a desfeita que Ricardo Coutinho lhe tributou.