Nonato Guedes
Lembro-me bem do tumultuado processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Mello em 1992. Foi o primeiro impeachment na história política brasileira e dentro do Congresso mobilizou-se uma denominada “tropa de choque” leal ao então presidente para barrar a qualquer custo o afastamento de Collor, acusado de tráfico de influência e ilicitudes no rastro do esquema PC Farias e da Operação Uruguai, versando sobre restos de dinheiro da campanha de 89 em que ele bateu Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, no segundo turno. Na presidência da Câmara Federal, pontificava o deputado Ibsen Pinheiro, do MDB do Rio Grande do Sul. Ele faleceu aos 84 anos na noite de ontem em Porto Alegre, onde estava internado em um hospital e sofreu parada cardiorrespiratória.
“Perdemos um homem público diferenciado”, escreveu no Twitter o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM-RJ, ao registrar que considerava Ibsen um exemplo e que teve a oportunidade de conviver e aprender muito com ele. Osmar Terra, atual ministro da Cidadania, vai além e considera que Ibsen era um dos mais brilhantes políticos brasileiros, “com uma enorme capacidade de formulação e de compreensão política”. A ex-senadora pelo Rio Grande do Sul, Ana Amélia Lemos, do PP, sublinhou que Ibsen foi um “político que, como os homens da fronteira gaúcha, tinha a coragem para enfrentar os grandes desafios”, referindo-se ao seu papel no processo de impeachment de Collor.
Além da coragem ou do desassombro, era indispensável o equilíbrio para fazer face aos lobbies de pressão que se espalhavam tentando contrapor-se à voz rouca das ruas e às manifestações dos estudantes caras-pintadas pelo impeachment de Collor. Ibsen Pinheiro agregou as duas qualidades, sem descambar para arrogância. Conduziu o processo de forma ética e, tanto quanto possível, transparente. Além de interesses corporativistas e de toda a natureza que eclodiram no bojo do processo, havia controvérsias sobre aspectos jurídicos vinculados à constitucionalidade do rito processual. Tratava-se, afinal, de caso inédito por aqui – o precedente de maior repercussão acontecera em 1972 nos Estados Unidos, quando deu-se o impeachment do presidente Richard Nixon, flagrado autorizando espionagem de adversários e escutas telefônicas ilegais de conversas de opositores no edifício Watergate, sede do Partido Democrata estadunidense.
Apesar de específico, o processo de impeachment de Nixon, do Partido Republicano, firmou jurisprudência em pontos essenciais e inspirou processos análogos em outros países. O Brasil, de forte enraizamento e tradição nas lides jurídicas, com centros aguerridos no Recife e Salvador, passando pelo Rio de Janeiro e São Paulo, foi como que desafiado a aprimorar suas leis e sua Constituição em situações excepcionais, digamos assim, de anormalidade institucional. Aqui, houve a preocupação de respeitar-se a linha de sucessão em episódios de impeachment. Na situação de Collor, procedeu-se à investidura do vice Itamar Franco, legitimado na titularidade uma vez ocorrido o desideratum. No caso do impeachment de Dilma Rousseff, a primeira mulher-presidente a sofrer impedimento, deu-se a ascensão do vice Michel Temer. Tornou-se ociosa, portanto, a hipótese de convocação de eleições extraordinárias para preenchimento do vácuo resultante de fato subjacente.
Nem no caso da morte do presidente Tancredo Neves, na década de 80, entrou em pauta convocação de eleições para escolha indireta (na época, regra vigente). Foi dada posse a José Sarney, o vice da Aliança Democrática, construída pela sabedoria e engenharia política minuciosa de Tancredo Neves, um “expert” em tessituras de bastidores. A preocupação de Tancredo, aliás, era a de resguardar as instituições democráticas. Sua vitória no Colégio Eleitoral, derrotando Paulo Maluf, com amplo endosso nas ruas, foi o tiro de misericórdia na ditadura militar instaurada em março de 1964 que legou um período de trevas e de terror político-institucional.
Ibsen Pinheiro era de uma estirpe que hoje é rara no cenário político brasileiro, expoente de uma geração de homens públicos especializados na arte do diálogo, do consenso, como mecanismo de diluição dos conflitos mais agudos e de adoção de soluções para demandas urgentes ou imperiosidades da sociedade. Em paralelo, nele realçava o respeito ardoroso à legalidade democrática, aos princípios constitucionais do Estado de Direito – que, atualmente, parece ameaçado de forma permanente no Brasil, devido a surtos de autoritarismo de extremismo de direita no próprio núcleo do poder que gravita em torno do presidente Jair Bolsonaro.