Nonato Guedes
Enquanto o presidente Jair Bolsonaro insiste no assédio à atriz Regina Duarte para aceitar a Secretaria de Cultura do seu governo, artistas e intelectuais saudosistas lembram a atuação do cantor e compositor Gilberto Gil como ministro da Cultura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em que executou projetos de repercussão, dialogou com todas as tribos e protagonizou episódios fantásticos. Um desses episódios extraordinários da sua passagem pelo ministério ocorreu durante o show que fez a convite do secretário-geral da ONU, Kofi Anan, em Nova York, em 2003, quando botou o secretário-geral das Nações Unidas para tocar tambor. O evento era uma homenagem aos mortos no atentado à sede da ONU no Iraque, entre eles o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello. No final do show, quebrando o protocolo, Gil chamou Annan ao palco, se emocionou ao abraçá-lo e pediu que ele se dirigisse às congas, instrumentos que o esperavam no palco. Annan começou a batucá-las e Gil atacou de “Toda menina baiana”. Nesse momento, todos começaram a dançar. O relato consta do livro “Gilberto bem perto”, assinado por Gilberto Gil e Regina Zappa.
Gilberto Gil pediu demissão do ministério em julho de 2008, dois meses depois de lançar seu disco “Banda larga cordel” (em que ele procura uma aproximação diferente, sem se preocupar com a ordem das músicas ou um excesso de produção). Em artigo intitulado “Eu tenho um sonho”, escrito para o jornal alemão Die Zeit e publicado em 28 de julho de 2005, Gil fez a síntese do artista e do político que já vivia no seu dia a dia: “No campo de batalha da política, o poeta não se encontra em melhor ou pior situação do que os outros. A poesia tem seu próprio domínio. Mas eu gosto quando as duas esferas se misturam. É como o pêndulo entre dois polos. Assegura um movimento contínuo. Fazer política poeticamente e poetar politicamente – os pensamentos e sentimentos de ambos os lados ganham com isso. Não se deve negar aos políticos o seu lado poético. Políticos podem ser poetas e vice-versa”.
Em dezembro de 2002, a carreira de Gilberto Gil ia de vento em popa quando ele recebeu um telefonema do recém-eleito presidente Lula que daria uma guinada radical em sua vida. Havia sido um mês de muito palco, Gil voltara ao Teatro João Caetano para lançar KayaN’GanDaya ao vivo, o LP em que canta as músicas de Bob Marley com o mesmo repertório do disco gravado em Kingston, na Jamaica, em novembro de 2001. Enquanto isso, o presidente Lula formava o seu ministério. Os amigos de Gil em Salvador – João Santana, Roberto Pinho – sugeriram ao futuro ministro Antonio Palocci o nome de Gil para o ministério da Cultura. E Lula gostou da sugestão. Gil não sabia o que fazer, conforme consta do livro. A ideia não lhe parecia de todo ruim, mas teria que enfrentar muitos desafios e sacrifícios. O salário de ministro era muito menor do que aquilo que ganhava fazendo shows, e teria que interromper ou, pelo menos, reduzir suas apresentações. Viajou para Brasília no dia seguinte sem saber ao certo o que diria ao presidente. Gil desembarcou com a indumentária de artista: calça, camiseta regata e camisa de linho por cima da camiseta, tudo branco.
Com Lula, o artista falou sobre patrimônio material e imaterial, sobre a preservação de Ouro Preto, sobre o fortalecimento do Iphan. Saiu da reunião já como ministro nomeado. Gil recebeu uma única orientação do presidente: democratizar a cultura. E um conselho: “Faça no ministério como você faz quando está no palco”. No dia seguinte, na foto oficial dos ministros, todos estavam de terno escuro. Gil todo de branco. O novo ministro tomou posse com um discurso incisivo em que desenvolveu o conceito de cultura para além do âmbito restrito e das concepções acadêmicas. O jornalista Luís Turiba, assessor de comunicação de Gil entre 2003 e 2005, acredita que a singularidade de Gil estava na maneira como utilizava a música como linguagem política: “Ele nunca abandonava o seu violão, embora tivesse interrompido a carreira de músico naquele momento. O violão estava sempre presente e, geralmente, era eu quem carregava. Uma vez, no aeroporto, em uma de suas viagens, alguém passou e, apontando para o violão, disse: “Aí, ministro, carregando sua caneta, hein?”.
No ministério, Gilberto Gil organizou um sistema nacional para a comunicação entre federação, estados e municípios no campo cultural. Criou também os Pontos de Cultura, um dos grandes marcos da sua gestão. O ministro Gil devolveu a autonomia a instituições como Iphan, Funarte, Biblioteca Nacional e Fundação Palmares, e garantiu a possibilidade de elas desenvolverem suas próprias ações. Ao mesmo tempo que lançava uma política nacional para integrar os museus públicos e privados do país, empenhava-se junto ao Congresso para ampliar os recursos da cultura. Gil, enfim, abriu o diálogo do Brasil às agendas contemporâneas internacionais de cultura, como a discussão da questão digital, da propriedade intelectual, da economia da cultura e economia criativa e da diversidade cultural. Nos fóruns internacionais, na América Latina, na África, na Europa e nos EUA, era comum dizer que outros países participantes quisessem ouvir o que o MinC tinha a dizer. “Nunca um ministério experimentou um crescimento tão expressivo, ainda que, insuficiente, dos seus recursos. Nunca houve um ministro da Cultura com um capital simbólico dessa amplitude”, resumiu o professor da UFBA Paulo Miguez, assessor especial do ministro Gil e secretário de políticas culturais do MinC, de 2003 a 2005.