Nonato Guedes
Em sua obra autobiográfica, o economista paraibano Celso Furtado, cujo centenário de nascimento transcorre neste 2020, tornado “Ano Celso Furtado” em nosso Estado por proposta da deputada Pollyana Dutra (PSB), aprovada pela Assembleia Legislativa, recorda os momentos difíceis da sua destituição do comando da Sudene, sua grande obra. Havia estourado o golpe militar de 64 e Celso já havia testemunhado no Recife a deposição do governador Miguel Arraes, que resistiu bravamente ao cerco dos algozes. Como diz Celso, a Sudene era muito mais do que uma agência administrativa. Graças a ela, emergira o Nordeste como entidade política.
“Nunca me ocorrera pensar que a Operação Nordeste tivesse um ponto final tão melancólico, com seu comandante saindo sub-repticiamente, em meio a pessoas que, receando comprometer-se, evitavam cumprimentá-lo”, narra Furtado, para embasar o raciocínio de que, só então, caíra a ficha, ou seja, ele se apercebera da exceção que tomava conta do sistema institucional brasileiro. “As prisões se multiplicavam, como se estivesse sendo executado minucioso plano adrede preparado para desmantelar toda a capacidade de resistência da sociedade civil”, refletiu o ex-ministro do Planejamento do governo João Goulart. Não havia mais o que fazer no Recife e era urgente que Celso Furtado tomasse suas cautelas diante do panorama temerário que se descortinava no horizonte.
Foi nesse ambiente de tensão que o ex-superintendente da Sudene embarcou com destino a Brasília, em busca de refúgio na casa de uma irmã. Já na Capital Federal, acompanhou pelo rádio a leitura dos atos institucionais que excluíam da vida pública um grande número de cidadãos. Entre os nomes que constituíam o pelotão de frente, figurava o dele. Cassado de direitos, proibido de ocupar-se da coisa pública, mediante processo secreto. “Provavelmente, a acusação fora a mesma feita a Sócrates: perverter a mocidade”, ironizou o economista paraibano, cidadão do mundo. Celso indagou-se quem estaria por trás daquele golpe, interessado em suprimir-lhe o futuro, ocultando a cara. A princípio, cogitou Castelo Branco e Costa e Silva, que haviam comandado recentemente o IV Exército com sede no Recife – mas estes haviam prestigiado com entusiasmo o trabalho da Sudene.
E prossegue o relato do ex-superintendente da autarquia de desenvolvimento regional: “Não bastaria afastar-me do cargo? Era uma medida punitiva ou preventiva?”. Anos depois, chegaria ao seu conhecimento revelação de alta patente do Exército, de que coube ao então coronel José Costa Cavalcanti a “iniciativa” de propor sua cassação de direitos políticos. “Esse senhor fora secretário de Segurança do governo Cid Sampaio em Pernambuco, elegendo-se em seguida deputado federal, o que lhe permitiu dedicar-se à atividade conspiratória, protegido por imunidades parlamentares. Faria em seguida bela carreira na “Revolução”, como membro de um círculo estreito de coronéis que acolitaram o general Golbery do Couto e Silva. Mas, no momento da cassação, era apenas alguém ligado a um ex-governador usineiro, este preocupado em destruir a raiz da “infecção esquerdista” que abalara suas bases eleitorais. É de admitir, portanto, que o sr. Costa Cavalcanti não tenha sido mais do que um moço de recados das oligarquias do açúcar”, descreve Celso Furtado.
Certo dia, foi visitado no refúgio em Brasília por João Agripino Filho, deputado federal. “Estivéramos muito próximos no governo Jânio Quadros, do qual ele fora ministro das Minas e Energia, e posteriormente ele se entusiasmara pelo trabalho da Sudene, passando a ser na oposição um de seus mais eficientes defensores na Câmara dos Deputados (…) Ele, agora, ali estava para oferecer-me seus préstimos. Quando se despedia, eu disse, meio em tom de brincadeira: “Oh, João, você que circula por aí entre esses gorilas, quiçá possa informar-me se eu posso descer no aeroporto do Rio sem ser agarrado pela gola. Nego-me a asilar-me em embaixadas, porque nada tendo a ocultar, estou disposto a encarar essa gente em qualquer processo. Mas se é para ser preso, quero sê-lo em “homme d’honneur, o que não posso esperar dos esbirros de Lacerda”. Logo depois, Agripino reapareceu e foi dizendo: “Transmiti ao Chefe da Casa Militar, general Ernesto Geisel, sua preocupação. Em minha presença, ele telefonou para o chefe da polícia política do Rio e disse-me em seguida que você podia viajar tranquilo”. Celso decidiu aceitar um convite do Instituto latino-americano de planejamento econômico e social ligado à Cepal para pronunciar uma série de conferências em Santiago do Chile. Convites de várias universidades de prestígio, particularmente dos EUA, chegavam às suas mãos. Celso passou, antes, por Buenos Aires, em cujo aeroporto redigiu pedido de renúncia ao mandato que recebera de outros dois governos com atuação na área econômica. Ponderaram-lhe que não se precipitasse, pois o golpe poderia ser efêmero. Celso foi categórico: “Essa gente levou dez anos para se apossar do poder. Não creio que saia em menos de quinze anos”. E passou a organizar sua vida em função desse prognóstico.
O golpe durou 21 anos!