Linaldo Guedes
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O dia 9 de janeiro de 2020 marcou o centenário de nascimento de um dos maiores poetas de língua portuguesa. João Cabral de Melo Neto nasceu nesta data, em 1920, e ao morrer, em outubro de 1999, deixou um legado que influenciou diversas gerações de poetas e gerou, também, epígonos. Quando morreu, especulava-se que era um forte candidato ao Prêmio Nobel de Literatura. Não chegou a ganhar este prêmio, mas inscreveu seu nome definitivamente na literatura mundial. Em depoimentos, poetas paraibanos falam sobre esse legado e sobre a influência de Cabral em suas poéticas.
Um dos poetas radicados na Paraíba que mais assume a influência cabralina em sua poética é Amador Ribeiro Neto, autor de livros como “Barrocidade” e “Poemail”. Para Amador, a importância de João Cabral para a poesia e para a cultura brasileiras é tão imensurável que torna-se indiscutível.
– Praticamente não há aspecto de nossa cultura brasileira, pós-Cabral, que não tenha sido influenciada ou, ao menos, tocada por ele. Da música popular ao cinema, das artes plásticas ao teatro. E por aí afora. Ele trouxe a cultura popular para a poesia (e para a dramaturgia) com um requinte e uma simplicidade que até hoje ressoa como novidade e encanto singulares – comenta.
Cabral é um tão importante, exalta Amador, que se, hipoteticamente, a ONU decretasse que o Brasil teria de eleger apenas dois poetas dentro de sua história geral da poesia, da colônia até a atualidade, um deles, sem dúvida alguma, seria João Cabral.
– Para a minha poesia, desde meu livro de estreia, “Barrocidade” (2003), João Cabral está presente como linha de influência e como poeta que homenageio. Depois em “Imagens & Poemas” (a quatro mãos com Roberto Coura, 2008) ele reaparece no geometrismo das imagens, da projeto gráfico do livrobjeto e nos poemas selecionados. Mais tarde, em “Ahô-ô-ô-ô-oxe” (2015), João Cabral é a grande figura norteadora dos experimentalismos dos poemas visuais-concisos e nordestinos. Por fim, no ano passado lancei “Poemail” (2019), livro tripartite cujas epígrafes de cada parte são todas de Cabral e que abre-se com um poema dedicado ao poeta de “Morte e vida severina” – revela.
Uma das mais gratas memórias acadêmicas de Amador foi um curso da pós-graduação na USP que assistiu com o professor, amigo e grande estudioso e especialista na obra de João Cabral de Melo Neto, professor João Alexandre Barbosa. “Ainda pareço ouvir a voz de João Alexandre lendo Cabral e sua dicção singular iluminava o poema enquanto o lia e a poesia de João Cabral ressurgia interpretada e aberta como um cristal. Era um presente à altura da poesia cabralina. Sou um leitor e releitor contínuo de Cabral. Pode me faltar tudo na vida: amor, feijão e pão. Só não quero que me falte, a danada da poesia do João”, brinca.
Lau Siqueira, outro poeta radicado na Paraíba, reforça a fala de Amador. Para Lau, as comemorações do centenário de nascimento de João Cabral de Melo Neto devem representar muito mais uma celebração do futuro que do passado da poesia brasileira. Talvez esse seja o seu maior legado, a sua marca, entende. “A poesia brasileira é antes e depois dele. Toda a sua obra ainda precisa ser muito lida e muito estudada. Sozinho, ele é uma escola de poesia. Uma marca da poesia brasileira no mundo”, defende.
– Acho que poesia João Cabral de Melo Neto influenciou e influencia a minha geração e vai continuar influenciando gerações inteiras, porque João Cabral deve ser lido indefinidamente. Ou seja: cem anos e é apenas o começo – teoriza, acrescentando que “Tecendo a manhã” é seu poema preferido de Cabral.
Expedito Ferraz Jr. é outro poeta que se revela discípulo de Cabral, que é, para ele, um dos poetas que exerceram maior influência direta sobre as gerações que os sucederam. “Prova disso é que entre nós, leitores, poetas e críticos, existe um certo consenso em torno de um conceito “cabralino” de poesia, associado ao rigor formal, ao racionalismo, à recusa da poesia como instrumento de confissão sentimental ou de autocontemplação narcísica”, completa.
– Cabral vacinou gerações de poetas contra tais excessos, nos ensinando a perceber o poema como lugar de um olhar específico para fora, para o mundo – uma espécie de fenomenologia. João Cabral nos legou aquele mesmo saber que ele atribui ao toureiro Manoel Rodríguez, personagem de um de seus poemas: o saber “…domar a explosão / com mão serena e contida / sem deixar que se derrame / a flor que traz escondida…” (Alguns toureiros). É um poeta singular, dos maiores da Língua Portuguesa – destaca.
Já o poeta Bruno Gaudêncio, observa que todo poeta não é apenas sua poesia, mas também sua mitologia. “Cabral é um exemplo disso. Criou-se uma áurea densa em relação a sua vida e poesia. De um sujeito sério, insensível, racional, antilírico, mas isso são apenas algumas formas de interpretar sua poesia e sua trajetória. O exemplo foi a biografia do José Castello, O Homem sem alma. Um poeta não cabe em jargões ou clichês”, enfatiza.
De maneira geral, avalia Bruno, Cabral é uma figura que construiu uma poesia amparada na linguagem, com uma preocupação estética refinada, fruto de experiências de deslocamentos espaciais e temporais. Para um leitor exigente de poesia, Cabral é único na literatura brasileira. “Um cânone inconfundível”, frisa.
– Sobre seu impacto na minha vida, confesso que no início dos anos 2000, como tomei conhecimento de sua poesia, me trouxe uma recepção não muito positiva. Preferi de primeira um Drummund. Um Ferreira Gullar. Mas, nesta mesma época, também não me sensibilizou uma Cecília Meirelles, por exemplo. Só mais recentemente consegui vencer a força negativa da primeira leitura. E isso só deveu-se uma leitura mais densa da poesia e da tradição modernista não só brasileira, mas europeia e estadunidense. Percebi que o Cabral era tão grande como Mallarmé, um Pround, um Valery… que sua poesia, tão ligada a suas raízes pernambucanas, estava em mim o tempo todo. Sua poesia edifica – reconhece.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal) e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.