Linaldo Guedes
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Não é à toa que “Nenhum espelho reflete seu rosto” (Arribaçã, 2019), novo romance de Rosângela Vieira Rocha, tem como cenário principal uma joalheria. Afinal, o enredo trata-se de narcisismo. Só que Rosângela não tece sua trama sobre esse narcisismo banal e fútil que alimenta a vaidade diária de nosotros mortais. O narcisismo de que fala é de outro tipo, bem doentio, sociopata, algo que faz mal mais aos outros que a si mesmo.
Helen é a personagem principal. Uma dona de joalheria que mergulha num relacionamento que começa nas redes sociais e se torna abusivo por conta do “narcisista perverso” que é Ivan, o antagonista da trama. Para construir esse cenário, Rosângela fez uma minuciosa e necessária pesquisa, tanto sobre o universo das joias, quanto em relação aos vários tipos de narcisismo que podem ser nocivos numa relação a dois.
O mito de Narciso é conhecido e bastante utilizado na literatura universal. Na mitologia, Narciso teria vida longa desde que jamais contemplasse sua própria figura. Várias obras abordam de forma direta ou indireta o tema. Desde Ovídio, em suas “Metamorfoses”, até Oscar Wide, com seu “Retrato de Dorian Gray”. Em “Nenhum espelho reflete seu rosto”, Rosângela expõe de forma crua o conceito do narcisismo. Traz para os dias atuais, embala-o no mundo das redes sociais e surpreende com uma obra que assusta e nos faz pensar, principalmente em relação ao machismo que está embutido nesse narcisismo.
Vejamos um trecho do livro de Rosângela: “Ele parecia gostar de me surpreender. Às vezes o abraçava por trás, quando ele estava sentado no computador, e seu corpo permanecia rígido, ele nem sequer se virava, não correspondendo ao abraço. Eu desistia e ia fazer outras coisas. De repente ele aparecia, sem fazer nenhum ruído e me abraçava longamente, como se eu fosse muito importante para ele.”
Até aí, o leitor está tão envolvido pelo Ivan quanto a personagem Helen e não percebe o narcisismo embutido em tais atitudes. Rosângela utiliza-se de uma técnica interessante e bem de acordo com o universo das redes sociais que motivam o affaire das personagens principais da obra: e-mails. É através de e-mails que o leitor vai tomando conhecimento do jogo de sedução de Ivan, das expectativas criadas por Helen e do desenlace que só não chega a ser trágico porque o enredo acaba levando para outro caminho. Talvez como uma utopia da autora em mostrar que é possível fugir a esse narcisismo doentio. Há dados reais no livro que mostram o quanto o narcisismo está de certa forma aliado ao machismo que torna a mulher refém de atitudes doentias. No seu estilo, que vai do presente ao passado em razão de segundos, sem que o leitor perceba, como já tinha feito em “O indizível sentido do amor”, Rosângela se firma definitivamente como uma das autoras mais representativas da literatura contemporânea no Brasil.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal) e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.