Nonato Guedes
Com algumas variações, tem sido praxe, na história do poder na Paraíba, a denúncia, por governadores recém-investidos, da “herança maldita” legada por antecessores. Em alguns casos, o teor da tal “herança” chega a ser superdimensionado como estratégia para dar ao governo de plantão um crédito de confiança ilimitado em face das dificuldades experimentadas por conjunturas recém-instaladas. No meu livro “A Fala do Poder”, sobre perfis e discursos comentados de governadores da Paraíba, de João Agripino Filho, na década de 60, a Ricardo Coutinho, no primeiro mandato, a partir de 2011, a narrativa da “herança” está presente nas palavras dos novos governantes ungidos pelo voto. Ou seja, os próprios governadores amplificam a extensão do legado negativo que receberam. Em retrospecto, pode-se afirmar que Ricardo Coutinho (PSB), que governou até o fim de 2018, superou os seus antecessores a ponto de ser inquinado como mentor de uma “Ocrim” que sugou as tetas oficiais. E ganhou do sucessor, João Azevêdo, certa indulgência, a ponto de não ser execrado com estardalhaço na mídia, como se deu em outras fases da crônica do poder local.
Tarcísio Burity, que foi governador por duas vezes, costumava dizer, nas conversas informais com este repórter: “O único governador que não falou mal do antecessor foi Tomé de Sousa. Porque foi o primeiro governador-geral do Brasil”. Mas já os sucessores de Tomé identificavam problemas ou abacaxis que teriam que descascar. O próprio Burity, ao voltar ao poder em 87, queixava-se de descontrole administrativo no Estado, que teria provocado a concessão de vantagens descabidas a funcionários públicos, além do excesso de nomeações, o que teria feito a folha de pagamento crescer desmesuradamente, comprometendo as fontes de receita disponíveis. A crítica era dirigida ao governo de Wilson Braga, de quem Burity fora aliado, gestão completada por Milton Cabral, como governador-tampão, que se revelou um desastre sob todos os pontos de vista.
Tais reminiscências chegam a propósito das gestões empalmadas por Ricardo Coutinho até 31 de dezembro de 2018. A segunda, iniciada em 2015, acabou sendo turvada por escândalos descobertos pela Operação Calvário, comandada pelo Ministério Público, que apontou desvios de recursos da Saúde e Educação, patrocinados por uma organização criminosa enquistada no governo em conluio com organizações sociais que exerciam gestão pactuada de áreas estratégicas de interesse público e pagavam propinas para expoentes do poder, numa relação amoral, conspícua, deletéria. Nota-se que Ricardo tenta, a todo custo, desvencilhar-se do estigma da ”herança maldita”, que nem é explorada ostensivamente pelo sucessor João Azevêdo, até porque o Ministério Público tem dado vazão a revelações escabrosas obtidas em delações feitas, motu próprio, por figuras decaídas da república dos girassóis.
Seria até redundante para o atual governador João Azevêdo, que foi gerado no ventre do “ricardismo”, massificar orquestração dirigida para estigmatizar Coutinho como o promotor do caos administrativo, se, afinal de contas, o Ministério Público tem sido pródigo na publicização das denúncias de irregularidades, feitas com riqueza de detalhes. Azevêdo, portanto, como que se exime dessa tarefa, convicto de que os fatos e as provas falam por si e constituem evidência inelutável do estado de descalabro a que a Paraíba foi submetida pelo líder que prometia estilo absolutamente diferente de governar. Em última análise, Azevêdo parece poupar-se diante de informações que ainda não tenham chegado ao seu conhecimento e que, porventura, mencionem, mesmo que de raspão, o seu nome, associado a supostos desvios funcionais praticados à larga na Era Ricardo Coutinho. É o que denotam as aparências e o que foi insinuado pelo deputado Walber Virgolino, mentor do pedido de impeachment do gestor.
Ronaldo Cunha Lima, eleito em 1990 e investido em 1991, sucedendo ao tumultuado segundo governo de Burity, mandou ver, no discurso de posse: “A realidade da Paraíba é tão dramática, que impõe reiteradamente o compromisso de mudança e, ao mesmo tempo, o máximo de humildade e de coragem para executá-la”. Mais adiante: “Encontro uma Paraíba degradada em suas tradições de dignidade e seriedade (….) Encontro dívidas que imobilizam o Estado e dívidas que sufocam a esperança, extirpando a fé e plantando o desespero. Testemunho com angústia uma Paraíba despedaçada”. O filho de Ronaldo, Cássio Cunha Lima, ao suceder a José Maranhão, começou sua oração dizendo: “Ontem, foi o último dia de perseguição política na Paraíba. Hoje será para nós o dia de um gratificante reencontro. Esse dia de confraternização universal marcará a nossa reunificação: a Paraíba, a partir de agora, terá de novo 223 municípios. O mapa do nosso Estado será recomposto com a reintegração das cidades alijadas pela retaliação e discriminadas pela intolerância”.
Em primeiro de janeiro de 2011, tocado pela emoção de estar à frente do governo, Ricardo Coutinho não economizou: “O povo chegou ao poder. Encerramos um ciclo de lutas e esperanças e iniciamos outro, inevitavelmente menos doloroso, mais prazeroso e eficaz. O futuro chegou, senhoras e senhores”. Pena que tenha chegado da forma como chegou e que hoje cobre de vergonha as tradições mais caras ao povo paraibano.