Nonato Guedes
A audiência que o papa Francisco concedeu ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, líder do PT, citado em pelo menos nove processos que versam sobre corrupção política, retroalimentou o “Fla x Flu” político brasileiro que havia dado as caras com força na eleição de 2018. Na época, como se sabe, Da Silva já cumpria pena de prisão na superintendência da Polícia Federal em Curitiba (ao todo ele ficou encarcerado por 580 dias), sob a acusação de lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Por isso, Lula não estava habilitado a ostentar o cetro de candidato, mais uma vez, ao Palácio do Planalto e teve, às pressas, que ungir o nome do professor Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo, para representar as cores da legenda que há 40 anos foi fundada no ABC paulista.
O presidente Jair Bolsonaro, enciumado com a deferência do papa a um líder político condenado por instâncias da Justiça no Brasil, reagiu em tom de blague afirmando que o Santo Padre é argentino mas Deus é brasileiro. O general Heleno Fragoso, da “entourage” de Bolsonaro, que, aliás, agora militarizou quase toda a Esplanada em Brasília, cogitou a hipótese de o Pontífice ter recebido Lula por “compaixão”. Em meio a esse “Fla x Flu” que opõe bolsonaristas e anti-bolsonaristas, cabe perscrutar alguma coisa da diplomacia que é adotada pelo argentino Jorge Bergoglio, o papa Francisco. Ele não tem o menor apreço pelo governo do presidente Jair Bolsonaro – e isto não se deve a uma suposta convicção esquerdista do papa, como tem sido equivocadamente apregoado por “experts” em política e…diplomacia. Bergoglio tem informações que o autorizam a suspeitar que Bolsonaro é um risco para a democracia e para as liberdades públicas. Como é um prelado comprometido com a Justiça Social e com o pluralismo institucional, o papa mantém um pé atrás em relação ao atual governo do Brasil.
Para transmitir essa posição sem necessariamente partir para o confronto ostensivo, para a beligerância assumida quanto ao governo do presidente Bolsonaro, o papa recorreu a artifícios da diplomacia do Vaticano aplicada a países com cujos regimes a Santa Sé não tem maior afinidade. Ou seja, o papa recebeu Lula, “o condenado”, para transmitir recados a Bolsonaro, o principal deles o de que o estilo de governo alicerçado em feições autoritárias não é abençoado por Roma. Qualquer manual básico com ensinamentos de Maquiavel reza que se pode lançar mão de metáforas ou de artifícios no jargão diplomático. Lula veio a calhar como o instrumento ideal, na presente conjuntura, para vocalizar a mensagem pontifícia ao governo de Bolsonaro. Fora daí, Francisco conhece suas limitações e não cogita extrapolar o significado da audiência, interferindo indiretamente, por exemplo, junto a comunidades eclesiais da Igreja Católica para uma opção preferencial pelo PT nas futuras eleições municipais. Pode parecer surrealismo puro, mas esta formulação também está sendo abraçada por analistas políticos com guarida, sobretudo, na mídia.
Com todas as letras está escrito em alguns sites e portais que o Pontífice veria com bons olhos a recriação da aliança operária-católica que nos anos 80 foi o “leitmotiv” para a fundação do Partido dos Trabalhadores. Essa “nova aliança” faria contraponto ao avanço que os pentecostais estariam logrando conquistar no território político brasileiro, incentivados pelo presidente Jair Bolsonaro. A análise não faz justiça à inteligência alheia – antes, a insulta, na medida em que ignora que por recomendação do próprio Lula, feita aproveitando o longo momento de liberdade que está desfrutando, o PT deve formular estratégias urgentes de aproximação com segmentos evangélicos do eleitorado, sem perder o elo com os segmentos católicos. Ou seja, o PT é exortado a adotar um equilibrismo político como álibi indispensável para recuperar espaços perdidos desde que a ética da legenda foi ferida de morte com os escândalos do mensalão e do petrolão. Esqueçamos essa parte. Há algo mais urgente a ser perguntado: o papa Francisco tem, mesmo, a pretensão de atuar como “cabo eleitoral” em disputas no Brasil?
Não é apenas o surrealismo por trás de especulações dessa ordem que tenta legitimar exegeses sobre a diplomacia do Vaticano e a conjuntura institucional do Brasil ou de outros países, mas a má fé de alguns oportunistas que querem pegar carona no episódio da audiência ao ex-presidente Lula para dar livre curso a suas fantasias e vendê-las como verdades prontas e acabadas. A Igreja tem um ativismo político, como se deu no combate à ditadura militar, assumindo princípios que, eventualmente, convergem com os postulados teóricos de partidos de oposição, mas não assume, nem pode fazê-lo, perfil de engajamento explícito por essa ou aquela legenda, por esse ou aquele partido. A obsessão de fortalecer a bandeira anti-Bolsonaro opera o milagre de destilar ilusões de ótica, plantadas de forma aleatória, até mesmo agredindo a lógica do que é, de concreto, a conjuntura respirada em nosso país. Pode-se enganar a muitos. Mas, enganar a todos?