Nonato Guedes
Um episódio anedótico marcou a reta final da campanha para prefeito de São Paulo em 1985, ano em que foram restauradas as eleições diretas nas Capitais. O então senador Fernando Henrique Cardoso, que concorreu à prefeitura pelo PMDB, sentou na cadeira do poder na véspera do pleito, travado em novembro daquele ano. Na verdade, ele posou para fotografia, a pedido de repórteres, com o compromisso de que só seria publicada no encerramento da apuração. A “Folha de S. Paulo” quebrou o pacto e divulgou a imagem antecipadamente, o que causou desconforto para FHC,e, além do mais, azar. Ele perdeu para Jânio Quadros, do PTB, por um percentual estreito – 34,1% a 37,5%. Jânio, após tomar posse, pegou uma lata de inseticida, que borrifou na cadeira de prefeito. Em tom teatral, ditou a jornalistas: “A poltrona de prefeito foi ocupada por nádegas indevidas”.
A diferença de 3,3% entre os dois concorrentes exprimiu a radicalização de uma disputa que teve outros postulantes. O atual vereador Eduardo Suplicy, por exemplo, concorreu pelo Partido dos Trabalhadores tendo como vice a atual deputada federal paraibana Luíza Erundina, que, poucos anos depois, vitoriou à prefeitura paulista, tornando-se a primeira mulher e nordestina a ocupar posto tão importante. Fernando Henrique fizera fama como sociólogo e assumira o Senado na condição de suplente. Estava picado, inexoravelmente, pela “mosca azul”, e, na década de 90, elegeu-se à Presidência da República, com reeleição. Aliás, a reeleição foi implementada no seu primeiro mandato e originou controvérsias, com denúncias de que o governo teria “comprado” votos para assegurar esse direito.
Jânio Quadros era um populista que fora alçado à Presidência da República na década de 60 com a promessa de varrer a corrupção do País e que ficou celebrizado quando renunciou sete meses depois, numa das páginas mais polêmicas da História brasileira até hoje.Ainda carregava o estigma de ter frustrado milhões de brasileiros com seu gesto – atribuído pelos mais cáusticos a um “porre” e, por ele, a “forças terríveis” que, ainda agora, permanecem obscuras. A despeito das suas atitudes rocambolescas, causava sensação junto a parcelas do eleitorado, de que foi exemplo o retorno à prefeitura de São Paulo, tanto tempo depois. Foi nesse contexto que em 1985 ele polarizou a disputa com o sociólogo-senador Efe Agá Cê e levou a taça em confronto dramático.
A campanha de Fernando Henrique Cardoso a prefeito acenava com a “modernidade”, misturada com pitadas de inclusão social – teoria que, na época, não era massificada como tal. Na verdade, o termo corrente era “justiça social”, construído para designar a incorporação ao mercado de trabalho de contingentes expressivos da população que estavam à margem do processo de desenvolvimento. Esses contingentes eram engrossados por levas de imigrantes, particularmente oriundos do Nordeste, também chamados de “retirantes” por fugirem das consequências adversas da estiagem periódica no semiárido desta região. Entre esses retirantes figurava um certo Luiz Inácio Lula da Silva, que posteriormente ganharia projeção como líder metalúrgico, fiador de greves em pleno fastígio do regime militar, fundador do Partido dos Trabalhadores (que este ano completou 40 anos) e presidente da República por duas vezes, tendo sido decisivo na eleição da sucessora, Dilma Rousseff.
O gesto de sentar na cadeira do poder antes da hora motivou arrependimento compungido de Fernando Henrique Cardoso e entrou para a crônica política como exemplo de autossuficiência a ser evitado por candidatos. Embora Fernando Henrique tenha aprimorado veleidades narcisísticas ao longo do tempo, a pose para foto na cadeira de prefeito de São Paulo foi uma conjunção de dois fatores: em primeiro lugar a precipitação derivada da autoconfiança; em segundo, o exibicionismo fútil, tolo, plenamente dispensável. Como era jejuno na atividade política – estava sendo apresentado, então, aos meandros de um jogo ardiloso – FHC ignorou lição elementar preconizada pelos políticos mais experientes, as chamadas “raposas políticas”, segundo a qual, “eleição e mineração, só depois da apuração”.
Ainda que o ex-senador tenha buscado fazer média com profissionais de imprensa, os repórteres fotográficos ávidos pela pose de impacto que, em qualquer circunstância, ilustraria uma reportagem, Fernando Henrique tinha a opção de se mostrar precavido, cauteloso, em face de uma disputa renhida a que estava se submetendo e que constituía, para ele, o grande batismo de fogo, por envolver a prefeitura de uma das capitais mais importantes da América Latina. A “ópera buffa” não teria sido perfeita se não houvesse um aparente coadjuvante que, na verdade, era o protagonista – Jânio Quadros, aquele do “Fi-lo Porque Qui-lo”, lembram?