Nonato Guedes
O respeitado teólogo Leonardo Boff enxerga sérios desdobramentos na insinuação feita pelo general Augusto Heleno de que o povo deve ir às ruas “contra a chantagem do Congresso”. Diz que bastou esse aceno autoritário para os aliados do presidente Jair Bolsonaro convocarem manifestação para o domingo, 15 de março, com direito a endosso do mandatário. “Ora, quando uma autoridade do Poder Executivo convoca uma manifestação contrária a outro Poder da República, no caso, o Legislativo, isso é gravíssimo e sinaliza conspiração golpista, ou, sem rodeios, o fechamento do Parlamento. Tomara que o Poder Judiciário, representado pelo STF, proíba tal manifestação, pois, caso contrário, correrá o risco de assinar o fechamento de suas portas”, escreveu Boff no site “Congresso em Foco”.
Lembra o teólogo que o protesto a favor do governo Bolsonaro, que está sendo articulado, deverá ocorrer na mesma data em que, há cinco anos, ocorreu a maior das manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). Ressalta ainda: “Foi com uma escalada de manifestações prévias, como a Marcha com Deus e a Família pela Liberdade, que os militares prepararam o golpe de 1964, que derrubou João Goulart, presidente constitucional e democraticamente eleito”. Boff diz que o sonho de todo político com vocação para caudilho ou ditador, avesso ao regime democrático, é governar pela supressão de todas as vias institucionais entre ele e o povo. Uma via direta, sem intermediação dos poderes Legislativo e Judiciário, hoje facilitada pelas redes digitais.
– Autoconvencido de que só ele sabe discernir o que convém ou não à Nação, o autocrata despreza o sistema partidário, trata os políticos como seus serviçais e se relaciona com a Constituição como o terrorista islâmico com o Alcorão. Ele ouve, mas não escuta, fala, mas não dialoga, age, mas não reflete. Seu pendor absolutista é, hoje, facilitado pelas redes digitais, por meio das quais faz chegar à população sua vontade e determinações. Frente a um povo despolitizado, desprovido de consciência crítica, o déspota emite suas opiniões como se fossem leis. Seus adeptos, movidos pelo senso de “servidão voluntária”, na expressão de La Boétie, o erigem à condição de “mito”, aquele que se torna paradigma, referência acima de qualquer suspeita ou juízo – assinala Leonardo Boff.
E continua o teólogo, na lúcida exegese de perfil: “O caudilho sabe que, sem apoio popular, seu futuro político corre o risco de virar mero sonho. Para evitá-lo, recorre ao recurso de armar mãos e espíritos. Liberar o porte e a posse de armas e plantar no coração e na mente de seus adeptos o ódio mortal a seus inimigos, reais ou imaginários. Essa segunda medida se efetiva pela descontextualização política, como se a conjuntura, os princípios constitucionais e o consenso entre os seus pares pouco importassem. Dotado de uma intuição impetuosa e de agressividade incontida, o autocrata fragmenta seu discurso, adota um vocabulário chulo, desdenha a coerência, troca o atacado pelo varejo, a floresta pelas árvores e cria um deus à sua imagem e semelhança. Ele não tem outra proposta ou programa que não seja se perpetuar no poder e transformar sua vontade em lei. Por isso, suas medidas provisórias têm o peso de definitivas”.
Boff indaga, então, providencialmente: “Onde andam os partidos de oposição, as centrais sindicais, os movimentos populares? Se o desemprego afeta mais de 11 milhões de pessoas; a economia retrocede; a saúde e a educação estão sucateadas; e 165 milhões de brasileiros sobrevivem com renda mensal inferior a dois salários mínimos; qual a razão de tamanha inércia daqueles que deveriam manifestar a sua indignação diante deste governo?”. Na opinião do teólogo, convém ter em mente o poema de Eduardo Alves da Costa, equivocadamente atribuído a Maiakóvski: “Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim/E não dizemos nada/Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada/Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada/”.
Tais reflexões, na atual quadra político-institucional brasileira, não são exclusivas do teólogo Leonardo Boff. Elas calam fundo na consciência de democratas de verdade, que não fazem a mínima concessão a surtos de autoritarismo como os que estão se tornando frequentes na vida do país desde que o Sr. Jair Bolsonaro foi investido na Presidência da República após passar pelo crivo das urnas. É evidente que o general Heleno é apenas um bode expiatório, um biombo das forças agrupadas em torno do capitão Bolsonaro e que se mobilizam para impor retrocessos, para devolver o Brasil à escuridão. Urge que esses ímpetos da tropa de Bolsonaro sejam contidos, antes que sobrevenha o pior e já não haja mais ninguém em condições de deter escaladas fascistas no país.