Nonato Guedes
Com uma carreira sobejamente vitoriosa e aplaudida na dramaturgia e na televisão brasileiras, recordista de premiações pela sua performance em variadas produções artísticas, Regina Duarte assume, hoje, o papel mais difícil da sua vida. Ela será empossada na secretaria de Cultura do governo do presidente Jair Bolsonaro, por convite e insistência do mandatário, que não tem demonstrado apreço por inúmeros expoentes do segmento e tem sido mesmo criticado ostensivamente, em shows, entrevistas ou em mensagens postadas em redes sociais. Para se submeter ao novo e espinhoso ofício, Regina rompeu um contrato de décadas com a TV Globo, onde representou personagens que ainda hoje dominam o imaginário popular.
Nas últimas horas, em Brasília, coincidindo com o desembarque do astrólogo e escritor Olavo de Carvalho, uma espécie de guru intelectual de Bolsonaro, foram exonerados alguns ocupantes de cargos na Pasta da Cultura que supostamente eram ligados ao “olavismo”. A debandada foi interpretada em alguns círculos como sintoma da autonomia que Regina poderá usufruir à frente da Cultura – alguns dos exonerados admitiram à imprensa que por trás das demissões estava o próprio presidente da República. O anúncio da aceitação por Regina da secretaria de Cultura desencadeou reações iradas de “patrulhamento”, esboçadas por colegas de profissão ou de carreira que são ostensivamente anti-Bolsonaro e se mostram saudosistas da Era petista e de privilégios concedidos pela Lei Rouanet, teoricamente focada no incentivo às artes e cultura. A própria Regina foi beneficiária da Lei e acusada de irregularidade no uso da “Rouanet” em uma de suas peças. Uma minoria de artistas e intelectuais se pronunciou em defesa de Regina, com apelos e exortações de respeito à sua trajetória.
Aos 72 anos de idade, a atriz, que ficou conhecida como “Namoradinha do Brasil” é hoje acusada de “direitista”, mas durante a ditadura militar era considerada subversiva. Os chamados serviços de inteligência do regime que durou 21 anos, de 1964 a 1985, produziram pelo menos vinte e cinco relatórios sobre ela. Os arapongas, como relatou uma reportagem minuciosa da revista “Veja”, colocaram a atriz em primeiro lugar numa lista de personalidades e artistas de teatros que doavam recursos à “Convergência Socialista”, tida como uma organização subversiva trotskista, que, segundo os militares, levantava dinheiro par a libertação de presos da ditadura na Argentina. A atriz foi alvo ainda de relatórios do Serviço Nacional de Informações, o sinistro SNI, ao visitar Cuba para promover uma novela, ocasião em que posou para fotos ao lado do líder Fidel Castro.
Em 1984, um dos relatórios do SNI tinha o título “Utilização de artistas para propaganda comunista” e reproduzia falas da atriz. Numa delas, Regina Duarte dizia que Fidel Castro era “um dos maiores estadistas do mundo”. Na década de 80, a atriz militou pelas Diretas Já. Depois, trabalhou no governo Fernando Henrique Cardoso como integrante do conselho de um programa tocado pela então primeira-dama Ruth Cardoso. Na eleição de 2002, causou polêmica ao declarar que “tinha medo” diante da perspectiva de vitória de Luiz Inácio Lula da Silva a presidente da República. Talvez date daí a ojeriza que artistas e intelectuais lulopetistas e de outras extrações dedicam à secretária de Cultura de Bolsonaro.
O ator José de Abreu, petista radical e amigo pessoal do ex-presidente Lula, foi ácido contra Regina quando soube que ela aceitara a secretaria de Cultura: “Acompanhem a tragédia, jornalistas do meu Brasil. Denunciem essa farsa. Ninguém com um currículo destes pode assumir um cargo público. Ou pode, num governo de merda como este. Se merecem”. Regina chegou a derramar elogios à presidente petista Dilma Duarte no seu governo. Nas últimas eleições, participou de atos de campanha de Bolsonaro, qualificando-o como “um cara doce”, com “alma democrática”. Dentro do próprio governo Bolsonaro, à boca pequena, a ala dos descontentes com a indicação joga búzios pelo fracasso de Regina. “Ela não dura dez dias no cargo”, chegou a afirmar um expoente desse grupo
A empresária e produtora Paula Lavigne, fundadora do Movimento #342Artes, que reúne nomes de peso da cultura nacional, disse que o convite a Regina Duarte representa um avanço porque ela, apesar de ser de “extrema direita”, não é fascista. Num dos governos de Lula, o cantor e compositor Gilberto Gil foi entronizado com todas as honras e o violão a tira-colo como Ministro da Cultura. Deu show de competência e ficou mais tempo do que o previsto. Com um detalhe: Gil não foi “marionete” dos artistas-ativistas de esquerda. Pelo contrário, afetou interesses corporativistas. Regina merece o beneplácito da dúvida. Ela não é uma tonta, como querem fazer crer seus desafetos como Zé de Abreu.