Nonato Guedes
Uma das lendas sobre a origem da tornozeleira eletrônica aplicada a presos para efeito de monitoramento judiciário e penal dá conta de que o juiz norte-americano Jack Love teve a ideia de criar o mecanismo por volta de 1977 ao ler uma historinha do Homem-Aranha em que o vilão passa a vigiar o herói. A tornozeleira ou pulseira eletrônica passou a ser o gadget da vez, ainda conforme essa lenda, tendo sido experimentada pelo estado do Novo México e a partir daí disseminou-se pelo mundo. O tal bracelete eletrônico de vigilância, outra denominação que lhe é atribuída, foi testado no Brasil, inicialmente, em São Paulo e, na sequência, em outros 18 Estados, com resultados favoráveis. Era uma medida preventiva diante da hipótese de fuga de apenados expostos a sanções como prisão domiciliar.
A tornozoleira ganhou visibilidade no Brasil quando foi acionada contra condenados ilustres que rechearam inquéritos e dossiês de investigações de autoridades policiais e judiciárias a partir de escândalos políticos nacionais como o do mensalão, que teve como protagonista maior a cúpula do Partido dos Trabalhadores, mas se estendeu por outras legendas com assento no Congresso Nacional. De quebra, foram arrolados nos escândalos empreiteiros e dirigentes de construtoras famosas, como a Odebrecht e a OAS. Eles confessaram tentáculos de organizações criminosas especializadas em roubar recursos públicos, em conluio com agentes políticos notórios, brindados com propinas que irrigaram contas e promoveram o enriquecimento ilícito. O “petrolão” foi outro escândalo que envolveu poderosos.
Entre as autoridades que decretaram o recurso à tornozoleira quem mais celebrizou-se foi o ex-juiz Sérgio Moro, da Décima Terceira Vara de Curitiba, capital do Paraná, executor das medidas decorrentes da Operação Lava-Jato, a mais bem-sucedida investigação contra a corrupção já realizada no Brasil e na América Latina, inspirada originalmente na operação Mãos Limpas, que foi desencadeada na Itália. A Lava-Jato pôs na cadeia ex-ministros de governos petistas como José Dirceu, Paulo Bernardes, Antônio Pallocci, ex-dirigentes de proa do PT como o tesoureiro Delúbio Soares, criador da engenhosa expressão “dinheiro não contabilizado”, que, traduzida para o português velho de guerra significa o “caixa dois”, ou seja, a infração da qual a Lei mantém distância providencial, bem como ex-governadores como Sérgio Cabral, do Rio, recordista de penalidade na história jurídica brasileira.
No livro “O Carcereiro”, escrito por Luís Humberto Carrijo, o agente da Polícia Federal Newton HidenoriIshii, que ganhou fama como “O Japonês da Federal” por ser responsável, como chefe do núcleo de operações da PF em Curitiba, pela carceragem onde estavam trancafiados os mais poderosos e notórios presos do país, contou que um dos fatores para o êxito da operação foi a autossuficiência dos gatunos ilustres que se julgavam acima da lei, tornando-se, por isso mesmo, relapsos em demasia. “Acredito que eles não tinham a prisão como um risco calculado. Apostaram na impunidade, ora porque tratavam direto com pessoas ligadas ao governo ou porque eram o próprio governo”, salientou o “Japonês”. Em suma, se achavam inatingíveis e nunca lhes passou pela cabeça que algum malfeito pudesse dar “zebra”. A Lava-Jato gerou subprodutos em vários Estados. Na Paraíba, mesmo, houve campo fértil para que pipocassem escândalos como o da Operação Calvário, a Operação Xeque-Mate e a Operação Pés de Barro, para se falar dos mais recentes.
Dois dos envolvidos na Calvário, o ex-governador Ricardo Coutinho (PSB) e a atual prefeita do Conde, Márcia Lucena, do mesmo partido, estão sob medidas cautelares e recorreram ao Superior Tribunal de Justiça para serem dispensados do uso da tornozeleira. A defesa de Ricardo Coutinho, apontado pelo Ministério Público como suposto chefe de uma “Orcrim”, organização criminosa que desviou vultosos recursos da Saúde e Educação do Estado, em conluio com organizações sociais já descredenciadas pelo atual governo, argumentou em petição ao STJ que o uso da tornozeleira pelo seu cliente equivale a uma prisão – no caso, supostamente injustificável pela circunstância de que Coutinho ainda espera julgamento por acusações que lhe foram feitas em delações premiadas.
Não há dúvidas de que a tornozeleira passa a sensação de prisão porque inibe, limita os passos, a mobilidade de figuras acusadas ou condenadas em alguma instância da Justiça por malfeitos. Cabe ressaltar, entretanto, que o golpe maior provocado pela pulseira eletrônica no tornozelo é de caráter moral, não propriamente físico. O uso da tornozeleira por determinação judicial equivale a um “aleijão” no caráter, na personalidade. Traduz um alerta à sociedade sobre o perigo de convivência social com acusados ou condenados que permanecem “sub judice”, na iminência, a qualquer momento, de voltarem para a cadeia. Ainda que o período de prisão seja breve, o estigma é definitivo. É isso que figuras como o ex-governador Ricardo Coutinho não querem ver tatuado nos rostos com que pretendem, ainda, se mostrar à opinião pública, em busca de votos, valendo-se da pouca memória de eleitores.