Nonato Guedes
Começa a cansar a sociedade brasileira o estilo de governar que o presidente Jair Bolsonaro adotou como sua marca intransferível, baseado na falta de ações proativas e no incentivo permanente, obsessivo, ao conflito. Ainda agora, o país se inquieta com a dimensão que pode vir a alcançar o surto do coronavírus – um foco de preocupação mundial, e o presidente brasileiro, além de reclamar do que chama “exploração desnecessária” do assunto – não canaliza nem mobiliza energias para preparar efetivamente a população para uma emergência. A obsessão que move Bolsonaro é a disseminação de intrigas em redes sociais, numa vertente, e em outra vertente, o que vai virando samba de uma nota só: a convocação de manifestações de apoio a ele e ao seu governo.
Bolsonaro pratica periodicamente o mais sórdido, explícito e deprimente culto à personalidade, de permeio com o estímulo a firulas pseudoideológicas que são construídas dentro da estratégia de desviar a atenção da população das discussões em torno dos seus problemas mais graves. O capitão, diga-se de passagem, adentra por um território em que é absolutamente ignorante quanto a conteúdos, pois não consta que em alguma fase da sua vida ele tenha sido sequer um razoável ideólogo de direita, da ultra-direita que procura personificar. Falta-lhe bagagem intelectual para tanto, o que o induz a cometer, de caso pensado, um estelionato: fomentar um debate para o qual não tem fichas, dado o seu despreparo quanto às questões de substância que joga como iscas no dia a dia.
Por outro lado, o que Bolsonaro cogita apresentar como suposto debate ideológico é uma armadilha da ociosidade temática, geralmente incompreensível para a grande maioria da população, que não está mobilizada com vistas a entrar numa guerra que não consulta o seu interesse imediato, a sua urgência da hora. Tem-se, então, da parte do presidente, um truísmo para iludir o grande público com o truque de que está governando e sinceramente resolvendo os problemas do país, enquanto despencam bolsas, cresce assustadoramente a violência, o desemprego chega à estratosfera e as questões pontuais dos Estados e municípios são ofuscadas pela declaração de guerra em tempo integral a gestores escolhidos pelo povo, de forma legítima, mas que não rezam pela cartilha de Bolsonaro.
Urge uma reação à orquestração ostensiva do presidente da República no sentido de desmoralizar as instituições representativas da sociedade brasileira como o Congresso Nacional e o Poder Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal. Ao atacar sistematicamente os outros poderes, o presidente da República incorre de forma clara, palmar, em crime de responsabilidade porque externa o seu completo descompromisso com os valores democráticos, regime que jurou respeitar mas que desobedece sem o menor resquício de pudor. Acrescente-se a este rol a imprensa, o primeiro alvo do capitão, que acaba se enredando numa situação dúplice ou contraditória, na qual destrata jornalistas mas não respira sem jornalistas, seja no cercadinho do Palácio da Alvorada, que perdeu quorum já faz muito tempo, seja em fóruns situados longe do Brasil, em países onde o presidente põe os pés.
A falta de nível, o autoritarismo latente, a insinuação de desrespeito a princípios democráticos consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil já constituem matéria-prima mais do que suficiente para levar-se à discussão um processo de impeachment do presidente, porque não lhe é facultada a prerrogativa de violentar o Estado de Direito, conquistado a duras penas em lutas memoráveis travadas nas ruas, desafiando, inclusive, os arautos da força travestidos de militares. O Sr. Jair Bolsonaro precisa ser avisado de que pode muito mas não pode tudo na conjuntura política-institucional brasileira. Não pode, sobretudo, arvorar-se do cargo para massacrar a sociedade, desqualificando os seus segmentos mais representativos, em termos chulos, incompatíveis com a dignidade que o cargo exige, nos moldes do republicanismo vigente nestes trópicos.
Completam o festival de sandices cometidas pelo presidente da República os atos de misoginia, ora cometidos pelo presidente Bolsonaro, ora estimulados, com agressões a mulheres, perseguições e ameaças de retaliações. Bolsonaro foi eleito na perspectiva de ser um contraponto à corrupção deslavada que descaracterizou os governos do Partido dos Trabalhadores – mas nem essa bandeira está conseguindo empalmar, diante dos focos deletérios que já contaminam áreas estratégicas do governo, fazendo ruir por terra o discurso moralista vendido como pomada maravilha à maioria que o entronizou no Palácio do Planalto. Foi dito, há pouco tempo, que é preciso algum poder que “segure” o presidente Bolsonaro. Faltou dizer que este poder, soberano, é a sociedade. É ela, em última análise, que Bolsonaro provoca constantemente – e cabe a ela reagir à altura e dizer “basta” à truculência do governo que está aí…