Nonato Guedes
Diferentemente da adesão, hoje, da grande maioria da população brasileira a medidas de prevenção contra o novo coronavírus, que já virou pandemia, o Brasil enfrentou em 1904 a chamada revolta da vacina, com manifestações de repúdio à obrigatoriedade da vacinação contra doenças graves que tomavam dimensão, a exemplo da varíola. O médico renomado Oswaldo Cruz, que liderou a mobilização pela obrigatoriedade da vacina, foi praticamente “caçado” por pessoas do povo. Os historiadores revelam que a mistura de atraso cultural com desinformação, combinada com rivalidades políticas, criaram um cenário desfavorável a medidas sanitárias num País que ainda em 1916 o doutor Miguel Pereira, presidente da Academia Nacional de Medicina, chamara de “imenso hospital”. A revolta da vacina estourou no Rio de Janeiro, que era a Capital do Brasil.
Contra a febre amarela, Oswaldo Cruz organizou batalhões de mata-mosquitos, encarregados de eliminar os focos de insetos transmissores. O número de casos diminuiu, a ciência saiu vitoriosa e Cruz pôde voltar sua atenção à luta contra a varíola. Narra o historiador Jaime Klintowitz em livro que Oswaldo Cruz convenceu o presidente Rodrigues Alves a tornar obrigatória a vacinação – foi quando começou a confusão. Velhos adversários do presidente aproveitaram a oportunidade para detonar seu governo. A lei permitia que brigadas sanitárias, acompanhadas por policiais, entrassem nas casas para aplicar a vacina à força. O jornal “Correio da Manhã”, o mais influente da República, promoveu campanha ostensiva contra “a obrigatoriedade que se choca contra o livre arbítrio”. Disse que a determinação era um “código de torturas”. Já Teixeira Mendes, chefe da Igreja Positivista, que tinha também influência no período, tratou a medida como “despotismo sanitário”. Jaime Klintowitz informa que demagogos de todo o tipo insuflavam a população contra a vacinação obrigatória. E até a Igreja Católica deu seu pitaco, classificando a campanha entre as “iniciativas de Satanás”.
“Havia também os simplesmente teimosos, como o médico e senador Barata Ribeiro, que declarava a quem quisesse ouvir: “Prefiro morrer a me vacinar”. Entre o povo corria o boato de que a vacina era produzida com o sangue de ratos comprados aos “ratoeiros” – função criada por decreto em setembro de 1903. O maior problema, no final das contas, era que a vacina precisava ser aplicada no braço ou na coxa e o puritanismo da sociedade carioca não admitia que enfermeiros desconhecidos desnudassem os braços ou levantassem os vestidos das senhoritas e senhoras. Oswaldo Cruz tornara-se o sujeito mais odiado do Rio de Janeiro. Os caricaturistas, que já o tinham ridicularizado por “comprar ratos”, eram impiedosos no tratamento do “inimigo do povo”, como o médico foi chamado nos jornais e em discursos na Câmara e no Senado”, narra Jaime Klintowitz.
A lei da vacina obrigatória foi aprovada pelo Congresso Nacional em 31 de outubro de 1904. No dia 10 de novembro, a cidade do Rio de Janeiro explodiu na revolta da vacina. Durante quatro dias reinou o caos. A “Gazeta de Notícias” public0ou em 14 de novembro: “Tiros, gritaria, engarrafamento de trânsito, comércio fechado, transporte público assaltado e queimado, lampiões quebrados às pedradas, destruição de fachadas dos edifícios públicos e privados, árvores derrubadas; o povo do Rio de Janeiro se revolta contra o projeto de vacinação obrigatório proposto pelo sanitarista Oswaldo Cruz”. Um senador, Lauro Sodré, quis aproveitar para depor o presidente e se tornar, ele próprio, ditador. Com o apoio de um general, Silva Travassos, foi à Escola Militar, então instalada na Praia Vermelha, e conseguiu a adesão dos estudantes. Uns 300 cadetes marcharam pela cidade rumo ao Palácio do Catete. Contidos à bala no meio do caminho, não chegaram lá. Ferido por um balaço, o general Travassos teve a perna amputada e morreu pouco depois – acrescenta a narrativa de Jaime Klintowitz.
O historiador relata que o levante foi finalmente contido pela ação conjunta da Polícia, do Exército e da Marinha mas o saldo da revolta da vacina foi de 30 mortos, 110 feridos e 945 presos, entre eles o senador Lauro Sodré, que passou dez meses num navio-prisão. O desastroso resultado do obscurantismo é que um novo surto de varíola eclodiu em 1908 com 10 mil casos. Em 1959, quando a Organização Mundial de Saúde lançou uma campanha internacional para erradicar a varíola, a transmissão da doença já desaparecera na Europa e na América do Norte. No final dos anos 1960, em um imenso esforço de vacinação, o Brasil conseguiu imunizar 88% da população. A saúde pública do país, contudo, continuava a ser má notícia. Em 1970, um surto de varíola atingiu o bairro de Olaria, no Rio de Janeiro, com vinte doentes. O último infectado, detectado em 19 de abril, foi também o derradeiro caso de varíola no continente. Em 1980, ela foi declarada extinta em todo o planeta. Conclui Jaime Klintowitz: “Havia se passado mais de meio século de seu discurso famoso e Miguel Pereira continuava atual: o Brasil ainda era um imenso hospital”.