Nonato Guedes
Em tempos de quarentena, ditada pela pandemia do novo coronavírus, o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, que morreu em 1980 e que se notabilizou pelo estilo polêmico, é indicado como uma das leituras de cabeceira, principalmente pela visão sarcástica, mordaz, com que se referia a fatos e a costumes. No dizer de Ruy Castro, a grande especialidade de Nelson era o ser humano – e ele demonstrava um “assombroso conhecimento das grandezas e misérias do indivíduo”, o que foi expresso em frases antológicas, em romance, peças teatrais e artigos de jornais. Uma de suas pérolas: “O Brasil deixou de ser o Brasil. Estamos sendo esmagados pelo anti-Brasil” (1969). Nelson foi um dos autores mais censurados em plena ditadura militar, embora, durante certo tempo, tenha hipotecado apoio ao regime, sem saber que um filho estava sendo torturado nos porões. Era fascinado por futebol e descreveu de forma magnífica lances geniais, dimensionando-os com sua fértil imaginação.
Autor de dezessete peças, um romance (O casamento) e oito folhetins, seis deles assinados por “Suzana Flag”, um por “Myrna” e um com seu próprio nome, Nelson, em 55 anos, como jornalista profissional, produziu mais crônicas, contos e artigos avulsos do que qualquer pesquisador será capaz de levantar – anotou Ruy Castro em “Flor de Obsessão – As 100 Melhores frases de Nelson Rodrigues”. É provável que nenhum outro escritor brasileiro tenha produzido tanto. Em muitas ocasiões, foi profético, como quando escreveu, em 1969, que “em Brasília, todos são inocentes e todos são cúmplices”. Tinha alguns alvos definidos, que costumava satirizar, como o bispo de Olinda e Recife, dom Helder Câmara, e o escritor e jornalista Alceu Amoroso Lima.
Nestes tempos de Fla x Flu político, que opõe nas redes sociais os seguidores do presidente Jair Bolsonaro aos adeptos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou aos opositores de Bolsonaro em geral, Nelson é espantosamente atualíssimo com sua frase: “Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar”. Nelson não escondia seu desapontamento com o que chamava de “complexo de inferioridade” do brasileiro, sobretudo em matéria de futebol, perante outros países. “O Brasil é muito impopular no Brasil”, chegou a dizer, acrescentando: “O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro”. E mais: “Eis o nosso dilema: – ou o Brasil ou o caos. O diabo é que temos a vocação e a nostalgia do caos”. Biografado em livro como “O Anjo Pornográfico”, Nelson revolucionou a linguagem e a crítica social no país – disso dão conta seus próprios críticos impenitentes que o consideravam “um reacionário”.
Nelson reacionário? Era, sobretudo, corrosivo, demolidor, implacável, dono de raciocínios impecáveis e invejáveis, resumidos numa frase, num “chiste” qualquer. Um lúcido, portanto. Ainda sobre o Brasil são dele estas definições cortantes: “O Brasil não tem idade. Falta-nos tempo. Ao passo que, em Roma, um pires, um reles pires, ou uma xícara de asa quebrada, ou mesmo uma bica entupida, tem mil anos. Somos um gigantesco terreno baldio. Temos imensas Sibérias florestais que jamais viram um escasso e único brasileiro. Só uma estreita orla litorânea é habitada e, assim mesmo, por causa do banho de mar. O Brasil precisa ser feito e nós não o fazemos. Existe uma aldeia espanhola em que as mulheres são quase bonitas, os homens quase honestos, as esposas quase fiéis, os ladrões quase ladrões. O Brasil lembra muito essa aldeia espanhola. Estamos sempre nos subúrbios de uma plenitude e lá não chegamos. E “quase” fazemos as coisas vitais e realmente nunca as fazemos”.
O dramaturgo natural de Pernambuco, cujo irmão, Mário Filho, denominou o Maracanã no Rio de Janeiro e que era bastante popular com criações do tipo “A vida como ela é…”, também era impiedoso com os brasileiros. Confiram a essência do seu pensamento a respeito de nós: “Normalmente, o brasileiro é um fauno de tapete. Só usamos sapatos para disfarçar os nossos pés de cabra. Podemos ter todas as modéstias, menos a sexual. O brasileiro finge um desejo indiscriminado e voraz por todas as mulheres, vivas ou mortas. No Brasil, há plateia para tudo e o brasileiro é, por vocação, plateia. Se um camelô vende caneta-tinteiro, junta gente; se morre um cachorro atropelado, junta gente; e se passa um batalhão, nós vamos atrás. O brasileiro tem uma alma de cachorro de batalhão. O brasileiro é um feriado. É o único povo que faz piada. Se não temos um vampiro, estejam certos: é a piada que torna inviável qualquer Drácula brasileiro. O brasileiro não está preparado para ser “o maior do mundo” em coisa nenhuma. Ser o “maior do mundo” em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade. O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima. Nosso traço mais vivo e característico é a tendência para autonegação. Qualquer vago insucesso induz o brasileiro a flagelar-se a si mesmo. Símbolo pessoal e humano do Brasil é aquele patrício que vivia anunciando: “Eu sou uma besta! Sou um quadrúpede de 28 patas”. Não lhe bastava ser uma besta, não lhe bastava ser um quadrúpede – precisava, intransigentemente, das 28 patas bem ferradas”. E, no arremate: “O brasileiro tem suas trevas interiores. Convém não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro”.