Nonato Guedes
Tive o privilégio de entrevistar o doutor Ulysses Guimarães três vezes num só dia, em João Pessoa. Eram matérias para publicações diferentes e pediam, óbvio, textos diferentes, de acordo com a linha editorial de cada uma e com o público a que se dirigiam, a saber: jornal “Correio da Paraíba”, jornal “O Estado de S. Paulo”, revista “A Carta”. Poucos políticos fazem falta neste País como o “Senhor Diretas” ou o “Senhor Constituição”, que tinha o dom de fustigar governos medíocres. E que, tal como personagens mitológicos da literatura, morreu no mar. Ou seja, “encantou-se”.
No livro de frases “Rompendo o Cerco” que o doutor Ulysses me autografou, consta um “Decálogo do Estadista”. Relendo-o agora percebo que nele não cabe a figura bizarra do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, especialista em andar na contramão dos fatos e da sociedade e um “projeto de ditador” que tende a não dar certo nestes trópicos. De forma condensada, transcrevo o teor do Decálogo concebido por doutor Ulysses para definir figuras especiais que atuam no Poder.
CORAGEM –O pusilânime nunca será estadista. Churchill afirmou que das virtudes, a coragem é a primeira. Porque, sem ela, todas as demais, a fé, a caridade, o patriotismo, desaparecem na hora do perigo. Há momentos em que o homem público tem que decidir, mesmo com risco de sua vida, liberdade, impopularidade ou exílio. Sem coragem não o fará. César não foi ao Rubicon para pescar, disse André Malraux. Se Pedro Primeiro fosse ao Ipiranga para beber água, suas estátuas não se ergueriam nas praças públicas do Brasil. O medo tem cheiro. Os cavalos e cachorros sentem-no, por isso derrubam ou mordem os medrosos. Mesmo longe, chega ao povo o cheiro corajoso de seus líderes. A liderança é um risco, quem não o assume não merece esse nome.
VOCAÇÃO – O estadista nasce, é o encontro de um homem com seu destino. O estadista é um animal político. Fora da política é um frustrado, um ressentido, um infeliz, embora possa ter êxito em outras atividades. Ainda que pagando o preço ingrato de percalços, perigos e sofrimentos, confirma o acerto da definição de Alphonse Karr de que o segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer. Político é como gato, está gemendo, mas está gozando.
TALENTO – Não há estadista burro. Há de ser talentoso, embora possa não ter cultura. Tiradentes e Juarez não tiveram cultura, mas foram estadistas, porque tiveram talento político. Como o samba, o talento não se aprende na Academia. A pessoa é gratificada com o talento. Talento é o dom de acertar. A política é a arte do bem-estar e da salvação popular. Político é aquele que tem talento para consegui-lo.
CARÁTER – Na conceituação de Milton Campos, o estadista tem “a posição de suas ideias e não as ideias de sua posição”. Não é um oportunista, o que se serve da política em lugar de servi-la, o que só pensa nas eleições futuras e não no futuro do País. Há “democratas” tão furiosos na oposição quão intolerantes no governo. Político de caráter é fiel – às ideias, não à carreira. Pode perder o poder, o emprego, a liberdade, mas não renega as ideias, não perde a vergonha. Galileu foi grande físico, porém, como estadista não entraria na História. Quem por medo se retrata não é estadista.
SORTE –Azarado não pode ser estadista. Como o general, embora tenha todas as qualidades, não ganha estátuas. Antes de lhe entregar o bastão de general, Napoleão investigava se seu soldado tinha sorte. Por falta de sorte, por obra da fatalidade ou de morte prematura, carreiras políticas frustraram-se no Brasil como as de Carlos Peixoto e Júlio de Castilhos. Com a morte de Lenine, disputavam o comando bolchevista o burocrata Stalin e o doutrinador Trotsky. Este foi no inverno caçar patos. Apanhou pneumonia, que o afastou temporariamente do proscênio político, ensejando a ascensão do rival. Há sujeitos tão caiporas que caem de costas e quebram o nariz, como zombou Chanfort. Não servem para político. Este é um eleito da fortuna,.
ESPERANÇA – Estadista é o arquiteto da esperança. Não é coruja que só pia agouro nem Cassandra de catástrofes. Sua legenda é a do herói francês: “Estou cercado. Eu ataco”. O estadista é o salvador. O povo desama a palavra “não”. O político iconoclasta desestabiliza sua carreira com o “não” sistemático. Os Dez Mandamentos, estruturados à base do “não”, são tão temidos quão desrespeitados. São Lucas é o evangelista mais querido porque é amoroso, não é apocalíptico, é o profeta da esperança, o poeta silvestre de “olhai os lírios do campo”.
PACIÊNCIA – A impaciência é uma das faces da estupidez. Paciência é a competência para fazer a hora, não se precipitar, seguindo a receita genial de Geraldo Vandré: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. O estadista tem a paciência de escutar, não é falastrão. Saber escutar é um dom político. “Deus deu ao homem dois ouvidos e uma boca, para que ouça o dobro do que fala”, eis o provérbio árabe favorito do Rei Faiçal. O estadista fala e diz, fala para agir, sua voz é comando, é toque de clarim seguido de avanço.
NÃO SERVIRÁS A DOIS SENHORES – A política não divide o tempo, a ocupação e as preocupações com nenhuma outra atividade. É incompatível a simultaneidade do político e médico, político e advogado, político e industrial. O politico do ramo é um obcecado, é o samba de uma nota só e leva a política até para a cama, para a mesa, para os domingos e feriados. O estadista é um monstro de trabalho. Não há estadista preguiçoso. O estadista sua a camisa que veste. Thomaz Edson irritava-se quando atribuíam à inspiração suas descobertas. “Devo-as à transpiração, custaram muito suor”.
AUTORIDADE – A autoridade é um atributo inato, é consubstancial ao político. A competência funcional é dada pelo cargo, a autoridade é pessoal, o homem público é gratificado por ela. É imantação misteriosa e sedutora, irresistível, temperada de respeito e admiração. Homem iluminado pela autoridade é visto por todos, ouvido por todos, onde está é polo de atração. Nereu Ramos irradiava autoridade. Apenas assumia a presidência da Câmara dos Deputados, o Plenário, de mar revolto, se aquietava em plácido largo. É o poder de comandar com o olhar. A autoridade promove a pessoa em personalidade.
ORDEM – São Tomaz de Aquino disse que a ordem é “as coisas no seu lugar”. Para isso é preciso hierarquizar e selecionar. É a capacidade de escolher. Quem confunde as coisas, desconhece prioridades, não tem senso de ordem. O estadista não atende para agradar mas porque é justo. E tem a coragem de descontentar, até amigos e parentes. O estadista quer a ordem justa, não a ordem imposta, guarda pretoriana de privilégios. Contemplando os milhões de despossuídos e injustiçados, Charles Maurras exclamou: “O que me espanta é a ordem, não a desordem”. O estadista se antecipa à rua na solução dos problemas sociais. Está com a rua, mas não na rua.
E então?