Nonato Guedes
O transcurso, hoje, dos 56 anos da intitulada “revolução” civil-militar, também conhecida como golpe ou “quartelada” de 31 de março de 1964, convida a sociedade à reflexão sobre os riscos que a Era Bolsonaro representa para a democracia que foi retomada vinte e um anos após a longa noite das trevas. Bolsonaro é remanescente do segmento militar também alcunhado de “linha dura” e já fez, mesmo como candidato a presidente, apologia de torturadores da ditadura como o famoso Brilhante Ustra, tendo enveredado, ultimamente, por teses extemporâneas como a reedição do AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
O capitão Bolsonaro, que está presidente, valeu-se do voto democrático para chegar ao poder e destruir a democracia. Tenta, desesperadamente, viabilizar-se como um “projeto de ditador”. Quer governar na base da intimidação e já deu provas de que não tem qualquer compromisso com a democracia, estando à espreita para golpeá-la na primeira chance que lhe for oferecida pelos incautos. Os exemplos de desobediência a normas de Saúde Pública no caso da pandemia do novo coronavírus que se alastra pelo Brasil sinalizam a estratégia do capitão para tirar proveito da crise montado na demagogia populista – ele inverteu a prioridade, que deve ser a salvação de vidas, colocando em primeiríssimo plano a volta ao trabalho num país dilacerado pela apreensão quanto ao contágio de uma doença ainda investigada no planeta.
Ontem, lideranças de esquerda e de agrupamentos de oposição ao governo que está aí subscreveram documento de profundidade exigindo a renúncia do presidente da República. Apesar da gravidade da situação, acentuada pelas posições de confronto e de risco que Bolsonaro tem protagonizado, a proposta da renúncia não tem eficácia junto ao círculo do poder. Bolsonaro não lida com a transparência, com o jogo aberto – omitiu, até mesmo, resultados de exames que fez para a Covid-19, como se não fossem do interesse de uma Nação traumatizada por mortes de presidentes, como o suicídio de Getúlio Vargas e o desenlace de Tancredo Neves antes mesmo de enfeixar o poder. Bolsonaro debocha da sugestão de renúncia, tanto mais porque formulada por alguns dos adversários que ele combate diariamente. A carta divulgada ontem, não obstante o denso simbolismo, se encerra nisso mesmo, no simbolismo.
A alternativa de maior impacto que se coloca na mesa é a da decretação do processo de impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Do ponto de vista da letra fria da Constituição que está em vigor, há argumentos para fundamentar o pedido de impeachment, o principal deles o crime de responsabilidade que está refletido na desobediência a regras de Saúde Pública, um péssimo exemplo que não se permite a um chefe de Estado, cujo poder de liderança impõe, justamente, a primazia de acatar medidas excepcionais decretadas em situação de calamidade, como a do isolamento social. Bolsonaro afronta vidas humanas quando ensaia atuações populistas em grupos que deveriam evitar o contato para se prevenirem do contágio. Como autoridade maior, o seu enquadramento em dispositivos da Constituição, aprioristicamente, é inquestionável.
O Congresso Nacional talvez hesite no acolhimento a um pedido de impeachment por não dispor de informação nítida sobre a quantas anda a imagem do governo e, em especial, do presidente Jair Bolsonaro, nestes tempos celerados de pandemia descontrolada. Mas há mais agravante que justifique o impeachment – o prejuízo que as posturas do presidente da República tem causado às medidas sanitárias que se impõem para prevenir a expansão do coronavírus em território nacional. Como se sabe, governadores de Estados e prefeitos de Capitais e municípios têm realizado um trabalho articulado de enfrentamento à doença, com medidas que se situam nos limites universais de casos semelhantes. Esse trabalho, que tem sido digno de elogios e reconhecimento, esbarra em termos de resultados na hierarquia que confere ao presidente da República poderes ainda fortes, e na falta de espírito de colaboração de Bolsonaro para com o exercício do dever de casa.
A conjuntura caminha para evoluir, lá na frente, no rumo do impeachment se não houver mudança de comportamento do presidente da República. Quanto ao golpe de 64, o transcurso de 56 anos, hoje, é apenas um evento do calendário, uma data que não diz respeito mais nem mesmo a figuras de proa que saíram às ruas, com terços nas mãos, pedindo liberdade e a defesa da propriedade. Somente os expoentes ou órfãos da linha dura e do retrocesso como o capitão Bolsonaro entoam alvíssaras para uma ditadura que acabou envergonhando o Brasil.