Nonato Guedes
Um casuísmo político que ficou famoso em certa fase da ditadura militar no Brasil foi a imposição pelo presidente Ernesto Geisel, nas eleições municipais de 1976, da chamada “Lei Falcão”, teoricamente concebida pelo ministro da Justiça, o político cearense Armando Falcão, para regulamentar a propaganda eleitoral igualitária no rádio e na televisão, mas, na prática, destinada a impedir o debate sobre os problemas nacionais e, colateralmente, bloquear a ascensão do MDB, partido de oposição ao regime, que capitalizava insatisfações da sociedade. A Lei Falcão entrou para o folclore político porque permitia apenas a exibição de fotos com dados pessoais (biográficos) dos candidatos, omitindo outras informações que os qualificassem. A Lei acabou sendo suspensa em 1985, mas foi definitivamente varrida do cenário institucional brasileiro em 1997, com a aprovação da Lei Eleitoral que passou a vigorar no período pós-redemocratização.
Falcão havia se tornado conhecido pela frase “Nada a declarar”, que costumava entoar a jornalistas quando abordado sobre questões ligadas ao governo militar. Posteriormente, ele escreveu um livro de memórias “Tudo a declarar”, no qual, ainda assim, não contou tudo o que sabia sobre episódios marcantes da conjuntura nacional que testemunhou ou a que assistiu. Jactava-se de ter censurado os meios de comunicação no período em que foi ministro. A lei que carregava o seu sobrenome foi ridicularizada, inclusive, no exterior. Na definição do deputado Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, a Lei Falcão era violência que impunha aos eleitores a escolha de fotografias, números e siglas partidárias em lugar de programas e aptidões. “Eleição sem propaganda é tão perigosa como casamento sem noivado”, comparava Ulysses.
E acrescentava o líder da oposição: “O rádio como fichário e a televisão como álbum de retratos testemunham o medo, o pânico do poder às ideias e o pavor à crítica. Visaram o PMDB mas atiraram no Brasil, obscurecendo as eleições, desestimulando a renovação das lideranças, silenciando a vigorosa e edificante polêmica sobre o país, seus homens e seus desafios. Enquanto é imposto este medieval retrocesso ao povo brasileiro, nos Estados Unidos da América do Norte, no esforço de emancipar as eleições das forças econômicas, as campanhas à Presidência da República serão financiadas pela Nação, com montantes definidos para cada candidato. O Brasil não pode continuar entre parênteses, com instrumentos excepcionais estranhos à sua história, à geografia, à índole de sua gente e ao sacrifício de seus libertadores”. Concluía Ulysses dizendo que a verdade não desaparecia quando era eliminada a opinião dos que divergem.
Falcão morreu em 2010 sem maiores referências por parte de expoentes da classe política. E, além da esdrúxula Lei que levava o seu nome, outros casuísmos tinham sido impostos, a exemplo do pacote de abril, que fechou o Congresso Nacional, instituiua reforma do Judiciário sem a manifestação legítima deste e criou aberrações como as figuras de “governadores biônicos” e “senadores biônicos”, alusão ao fato de serem nomeados, não eleitos pelo povo. O ex-ministro afirmou, em depoimento no livro, que a lei Falcão “não era tão ruim como assoalhavam, pois durou anos seguidos. Sei que era imperfeita. Mas há quem tenha saudades dela, quando começa o irritante desfile de asneiras nos programas gratuitos do período imediatamente anterior aos pleitos eleitorais”.
Falcão contou que a lei surgiu no ambiente da “revolução de 1964” que procurava conciliar desenvolvimento e segurança. E explicou: “Fora praticamente vencida a guerra subversiva, liquidando-se os atentados, os ataques a quartéis, o sequestro de embaixadores estrangeiros. Desde a eleição do presidente Castelo Branco substituíra-se em boa hora o sistema do voto direto pelo indireto para postos executivos. Mas eleição não deixava de haver – eleições para o Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores. E não convinha perdê-las, pois a derrota enfraqueceria o Movimento de 31 de Março, que reformava e modernizava o Brasil. Ora, um dos fatores mais decisivos para triunfar nos pleitos eleitorais sempre esteve na força da televisão e do rádio. Assim acontecendo, pensei na hipótese de uma legislação que não suprimindo a presença dos candidatos oposicionistas na disputa das urnas, reduzisse o impacto dos instrumentos de propaganda utilizados. Fortaleceu-se, aí, a ideia de introduzir o sistema do retrato e do currículo de cada um, exclusivamente, mas todos tendo o direito de aparecer e mostrar-se ao eleitorado. Os programas eram rigorosamente gratuitos, supervisionados pela Justiça Eleitoral, e a lei era geral: não discriminava, não favorecia nem desfavorecia, tratava igualmente os candidatos do partido de oposição e do partido de situação”.
Num momento de irritação, o então senador Franco Montoro (SP), líder da Minoria no Congresso, qualificou a lei Falcão de “rolha”, por impedir que os candidatos expressassem livremente as suas ideias e propostas para um Brasil melhor. Contraponto de Armando Falcão: “No geral, a televisão e o rádio têm um papel fundamental na educação do povo. Nossa cultura, nossos costumes, as tradições brasileiras mais arraigadas devem encontrar, na televisão e no rádio, casamatas inexpugnáveis. A democracia que não tiver a nítida consciência disso marcha para o terreno da perdição”.