Nonato Guedes
Com a espada de Dâmocles pairando sobre as eleições municipais deste ano, em virtude da pandemia do novo coronavírus que proíbe aglomerações e impõe como regra o isolamento social, a “Folha de São Paulo” reconstitui a última vez em que eleições tiveram adiamento no Brasil – em 1980, por decisão do Congresso, ainda na vigência da ditadura militar, quando os mandatos dos prefeitos foram prorrogados por dois anos. Além dos mandatos de prefeitos, foram prorrogados os dos vereadores de 4.000 municípios, semanas antes da data marcada para a votação.
“Se hoje a motivação para o adiamento é uma crise sanitária sem precedentes na história recente, naquela época a medida era interpretada como uma manobra governista para evitar uma derrota avassaladora nas urnas”, ressalta Felipe Bachtold em texto publicado pela “Folha”. À frente do Palácio do Planalto há quarenta anos atrás estava o general João Figueiredo. A justificativa oficial para o adiamento foi a de que não havia tempo suficiente para que os partidos cumprissem antes da eleição todas as formalidades previstas na reforma partidária de 1979, que permitiu a existência de mais partidos além da Arena e do MDB, as duas únicas legendas legalizadas durante a maior parte da ditadura.
Com a novidade, surgiram legendas como o PT, PDT e Partido Popular, além de ter sido recriado o PTB. A proposta, apresentada pelo deputado federal goiano Anísio de Sousa, previa que os prefeitos e vereadores eleitos em 1976, que deveriam ter o mandato encerrado no início de 1981, teriam sua permanência no cargo prorrogada por mais dois anos. Dessa forma, a eleição municipal coincidiria com a eleição estadual de 1982, que seria a primeira votação direta para governadores desde a década de 1960. Por força dos atos institucionais, naquela época a eleição para prefeitos das capitais não era direta. Mesmo assim, tinha grande peso no jogo político daquele tempo. “Eram pequenas e médias cidades. A única oportunidade política para debater era essa”, disse à “Folha” o ex-senador gaúcho Pedro Simon, 90 anos de idade, um dos fundadores do MDB.
No contraponto, o repúdio à proposta de adiamento agregava nomes como o do ex-presidente Jânio Quadros, o então senador Itamar Franco, do PMDB de Minas Gerais e Luiz Inácio Lula da Silva, à época com 34 anos e presidente do recém-fundado Partido dos Trabalhadores. Na ocasião, o petista deixou claro: “Queremos eleições em 1980 e o PT está se preparando para concorrer”. Paulo Maluf, então governador de São Paulo, dizia que prefeitos e vereadores contrários à prorrogação deveriam renunciar, por coerência. A proposta foi submetida a votação no Congresso em setembro de 1980, faltando pouco mais de dois meses para a eleição, marcada para o dia 15 de novembro. Houve tumulto nas discussões acerca da matéria, com os governistas insistindo que o país estava em um estágio inicial de reorganização política e não havia mais prazo, por exemplo, para a formação de órgãos diretivos das novas siglas e superação de dificuldades de filiação do eleitorado pelos municípios.
A “Folha de S. Paulo” recorda que Itamar Franco esteve à frente das tentativas da oposição de barrar a proposta e chegou a acionar o Supremo Tribunal Federal contra a votação, mas o pedido foi negado. A sessão para votar a prorrogação registrou galerias cheias de estudantes, além de vereadores e prefeitos interessados na extensão dos respectivos mandatos, e teve que ser interrompida por causa das manifestações de hostilidade. Moedas e cadeiras chegaram a ser atiradas nos deputados que votavam. O clima tenso do entorno acabou transbordando para o plenário. Durante os debates, parlamentares trocaram empurrões e chegaram a se agredir. A oposição decidiu, por fim, boicotar a votação. Depois de 13 horas de sessão, já na madrugada do dia 4 de setembro de 1980, o adiamento das eleições municipais acabou aprovado com os votos de 217 deputados e de 35 senadores.
“Foi uma das sessões mais dolorosas e tristes que já testemunhei na minha vida pública”, desabafou o deputado federal Ulysses Guimarães, presidente nacional do PMDB. Anos depois, em 1988, durante a Constituinte, outro debate sobre data de eleições movimentou o Congresso. Enquanto José Sarney exercia a Presidência, os parlamentares tiveram que decidir a extensão do mandato do próprio presidente durante a elaboração da nova Constituição. Proposta encurtando a permanência de Sarney no cargo foi derrotada e ficou definido que a primeira eleição direta para presidente após a ditadura militar ocorreria em novembro de 1989. A proposta atual, de adiamento das eleições para dezembro, ou de prorrogação de mandatos até 2022, enfrenta fortes resistências junto à sociedade brasileira.