Nonato Guedes
Na atual conjuntura institucional brasileira um presidente da República, o capitão Jair Bolsonaro, move-se em “palpos de aranha” para tentar demitir o seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, “doublé” de médico e político, que, curiosamente, é o grande fiador da política de prevenção e enfrentamento ao coronavírus, a pandemia que se espalhou pelo planeta. Mas houve um presidente da República, o general Ernesto Geisel (1974-1979) que exonerou o ministro do Exército, Sylvio Frota, e abortou a conspiração que este empreendia para se tornar presidente, sucedendo ao próprio Geisel. Frota, que morreu em 96, era representante da chamada linha dura das Forças Armadas e se opunha a medidas de liberalização do regime, camufladas no termo “distensão lenta e gradual”, que acabou possibilitando a concessão de anistia e o retorno de exilados políticos punidos pela ditadura militar de 64.
Bolsonaro tem ciúmes do prestígio alcançado por Mandetta na crise do coronavírus e teme que ele se torne um concorrente forte na eleição presidencial que ainda vai ser travada em 2022. Por isso, luta para minar o cacife do ministro, cujas medidas de isolamento social adotadas em estreita sintonia com a Organização Mundial de Saúde são sabotadas, de público, pelo mandatário. Frota chegou a se articular com a classe política para legitimar a pretensão de ser presidente por via indireta (na época, a escolha era meramente homologatória, já que na prática havia um rodízio de generais no poder). A imprensa falava na “bancada frotista”, que reunia 84 parlamentares, entre os quais era mencionado o paraibano Wilson Braga, que se elegeu governador do Estado em 1982, derrotando, no voto, Antônio Mariz (PMDB).
Geisel manejava cordéis, nos bastidores, para emplacar à sua sucessão o nome do general João Batista de Figueiredo, que acabou sendo, de fato, o último expoente da ditadura, em atmosfera pré-reabertura democrática. Frota não escondia suas opiniões contestatórias à linha seguida por Geisel, inclusive, na diplomacia externa e na política interna e Geisel passou a acompanhar os passos do seu auxiliar, atento a surpresas desagradáveis que viessem a ser tramadas. O presidente, que foi secretário de Finanças na Paraíba, com 23 anos, depois de participar da revolução de 1930, tomou conhecimento de que Frota expedira convocação a todos os comandantes do Exército para se dirigirem, em Brasília, ao seu gabinete, no chamado Forte Apache (QG do Ministério), com vistas a suposta análise da conjuntura. O ministro, na verdade, queria dar demonstração de força de que contava com a oficialidade ao seu lado.
A manobra de Frota fracassou. Os comandantes do Exército que desembarcavam em Brasília, ao invés de rumar para o ministério comandado por Frota, se encaminharam ao Palácio do Planalto, onde eram esperados por Geisel, que os pôs a par da situação e, naturalmente, pediu solidariedade ao seu comando. Os comentários de Frota sobre a situação do governo repercutiam nos diferentes setores, até pela gravidade de acusações, como a de que Geisel era “comunista” e que o seu governo estava infiltrado de “subversivos”. O libelo do ministro não foi levado a sério em algumas esferas importantes do poder – afinal, Geisel ganhara visibilidade com suas convicções “revolucionárias” e anticomunistas, as quais expunha sem marcas de sectarismo. Na política externa, abriu relações com a China por pragmatismo, dentro da filosofia de colocar em destaque os interesses econômicos do Brasil. O mesmo se deu nas relações com Israel.
Depois de se assenhorear do apoio de chefes das unidades militares estratégicas sediadas, por exemplo, em São Paulo, Porto Alegre e Recife, o presidente Ernesto Geisel intimou o ministro Sylvio Frota para comparecer a uma audiência no Planalto. Lá, disse com todas as letras, sem tergiversar, que precisava do cargo e que Frota não era mais o ministro. Não houve espaço para que o então ministro conseguisse esboçar qualquer tipo de reação. Foi substituído no cargo pelo general Fernando Belfort Bethlem, que era tido como aliado de Sylvio Frota. Para todos os efeitos, a aventura frotista encerrava-se na saída do ministro, e, com ela, o período de torturas de presos políticos e de assassinatos de opositores do regime que vinham sendo praticados nos porões da ditadura. Foi de autoria de Geisel a Emenda Constitucional número 11 que revogou o famigerado AI-5 e o banimento de cerca de 100 exilados políticos.
Não parece plausível qualquer comparação que se tente estabelecer entre o general Ernesto Geisel e o capitão Jair Bolsonaro, em termos de estilos no exercício da presidência da República. Geisel, além da formação intelectual, impunha respeito junto às próprias Forças Armadas e contava com escudeiros que foram decisivos para medidas de liberalização política, a exemplo do general Golbery do Couto e Silva, ministro da Casa Civil, e do senador Petrônio Portella, presidente da Arena e hábil negociador político. Bolsonaro treme de medo na hora de pegar a caneta para demitir um ministro que está conduzindo um esforço de guerra para salvar vidas em meio a uma pandemia. Só lembrando: o ajudante de ordens de Frota, quando ministro do Exército, era um certo capitão Augusto Heleno, hoje general, chefe do GSI do capitão Bolsonaro, que é presidente.