Nonato Guedes
Odorico Paraguaçu foi celebrizado na literatura e na dramaturgia como prefeito da fictícia cidade de Sucupira. Seu perfil era o de um “coronel das antigas”, referência a poderosos do interior que compravam títulos para arrotar força e prestígio. Odorico mesclava o maquiavelismo tupiniquim com gestos do mais autêntico populismo, entre os quais o compromisso de dotar Sucupira de um cemitério, cuja inauguração era sempre cancelada por falta de mortos. Além do mais, figuras como Odorico não tinham o menor zelo com o dinheiro público. Para falar a verdade, nem escrúpulos tinham e não obstante lutavam com unhas e dentes para se perpetuar no poder, “tratorando” adversários políticos e jornalistas de oposição. Ainda temos em atividade, nos mais longínquos lugares, personagens que tentam imitar Odorico em pelo menos uma coisa: no ofício de surrupiar o sacrificado dinheiro público.
O contraponto a Odorico, não na ficção mas na vida real, embora se tratasse de um mestre da literatura, foi Graciliano Ramos, autor de “Vidas Secas”, entre outros best-sellers do regionalismo, que aos 35 anos de idade tornou-se prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, em Alagoas. Graciliano, que morreu em 1953, foi candidato único à prefeitura em 1927. Governou apenas dois anos, renunciando em abril de 1930, segundo explicou, por pressões políticas. Era o tipo do gestor que contrariava interesses. O também autor de “Caetés” imprimiu na pequena localidade o que se chama de austeridade administrativa. Era extremamente vigilante em relação ao uso dos recursos públicos e disso deu demonstrações em célebres relatórios que chamaram a atenção dos seus futuros editores. Sim, porque Graciliano foi logo sequestrado para a literatura, e foi aí que definitivamente se consagrou.
Além de guardião dos cofres públicos em Palmeira dos Índios, Graciliano investiu os recursos na construção de escolas, na Saúde e em obras essenciais de infraestrutura que a população reivindicava. Foi extremamente rigoroso com funcionários públicos que não queriam trabalhar – na verdade, almejavam sinecuras. Ao final da sua administração curta, num dos relatórios que produziu para prestar contas aos munícipes e às autoridades em geral da situação em Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos recorreu à verve literária para ironizar funcionários que saíram para fazer política e funcionários que foram demitidos porque não faziam coisa nenhuma. Foi correto para com os servidores que trabalhavam.
Tivemos um Graciliano numa cidadezinha – na época – do interior da Paraíba. Foi Antônio Mariz, prefeito de Sousa, no Sertão, na década de 60, que prestava contas com assiduidade espantosa dos valores que a prefeitura arrecadava e dos valores que eram gastos, com especificação das despesas. A prestação de contas era lida em serviços de alto-falantes e exposta na sede da prefeitura para o conhecimento dos interessados. Mariz chegou a ser deposto quando estourou o golpe militar de 1964, mas foi devolvido ao cargo, que exerceu até o fim. Ainda hoje é referenciado como exemplo de gestor público. Infelizmente, quando chegou ao governo do Estado, em 1995, pilotando um “Governo da Solidariedade”, foi abatido por um câncer que já se espalhava no organismo. Dele se diz, ainda hoje: “exemplo de seriedade parou aí”. Um generosíssimo reconhecimento à postura que Mariz demonstrou na trajetória de líder político.
Essas recordações chegam, agora, por causa da situação de calamidade nacional decretada no bojo da pandemia do novo coronavírus, que a despeito do ceticismo do presidente Jair Bolsonaro, avança em escala preocupante. Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e câmaras municipais, em sessões rápidas e remotas, aprovaram a concessão de estados de calamidade, com isto possibilitando gastos ilimitados nos fins específicos – aqueles que se destinam ao enfrentamento do coronavírus. A rubrica dos recursos é focada expressamente em contratação de profissionais da área médica e de enfermagem, aquisição de materiais de trabalho, construção e ampliação de leitos e outros investimentos em equipamentos. Não ficou claro para a opinião pública como se daria a transparência na aplicação dos recursos. O governo do Estado da Paraíba, representado por João Azevêdo, acena com prestação de contas do investimento dos primeiros reais. Nos municípios, essa transparência é muito mais difícil. Em alguns casos, até impraticável, abrindo-se janelas para desvios que podem ou não serem detectados lá na frente. A gastança desenfreada poderá fazer vítimas fatais, enquanto isso.
O que se espera dos atuais prefeitos – das Capitais como São Paulo à pequenina cidade de Zabelê, na Paraíba – é que sejam mais Graciliano Ramos e menos Odorico Paraguaçu. Aliás, que sejam apenas Graciliano Ramos ou Antônio Mariz – nunca Odorico. Seria uma forma de tais prefeitos até se compensarem do profundo desgaste que comumente enfrentam, da parte de eleitores cada vez mais descrentes dos homens públicos e do seu grau de compromisso com o interesse de todos. Se houver registro de desvios, que seja feita Justiça. Já ficou claro que, decididamente, o cidadão comum no Brasil não tolera mais a impunidade – nem tem “estômago” para populismos disfarçados de corrupção.