Nonato Guedes
Ah, esses militares no poder…O capitão Bolsonaro é o que se conhece, pelo que se vê diariamente, com atitudes impetuosas, agressivas, desobedientes. E em constante briga com repórteres, de cuja companhia, entretanto, não consegue se privar porque, afinal, são eles que proporcionam os holofotes, com suas perguntas incômodas, provocativas. É inevitável, nestes tempos, a lembrança do general João Batista Figueiredo, último presidente do ciclo militar instaurado em 1964 e concluído em 1985. Figueiredo também era monossilábico nas falas em público. Adotava frases curtas que às vezes tomavam a forma de chiste, de ironia – ainda que de mau gosto. Quando, por exemplo, foi perguntado sobre o que faria se ganhasse o salário mínimo (cujo valor era irrisório) e respondeu de bate-pronto: “Eu daria um tiro no coco…”.
Revendo arquivos sobre a Era Figueiredo, bati com a narrativa do episódio em que ele, ainda não empossado na presidência da República mas já ungido pelo ditador de plantão, Ernesto Geisel, aceitou falar com os repórteres Getúlio Bittencourt e Haroldo Cerqueira Lima, da “Folha de São Paulo” com a condição de que não usassem gravadores nem fizessem anotações. Isto ocorreu a quatro de abril de 1978, quando Figueiredo posava de “candidato” num sistema que impunha governantes de plantão. Ele tomou posse em março de 1979. E, como sabemos, na saída da rampa do Palácio do Planalto pediu ao povo brasileiro que o esquecesse. A despeito das restrições de Figueiredo, que dizia aos repórteres que não iria conceder entrevista mas apenas manter uma conversa com eles, as respostas do militar foram reconstituídas com fidelidade pela dupla e publicadas em duas edições consecutivas da “Folha de São Paulo”.
Evidente que houve um esforço ingente da parte dos dois profissionais de renome nacional para resgatar da memória os trechos pontuais das palavras ditas pelo quase presidente da República. A fim de concretizarem tal desideratum, os repórteres, tão logo Figueiredo deu por encerrada a ‘conversa’, abalaram-se rumo à redação da “Folha” e escreveram o que haviam conseguido memorizar de quase uma hora de declarações que nem sequer constituíam “off”, uma vez que a publicação estava autorizada pelo dono delas. Figueiredo terá praticado uma pequena maldade contra os repórteres, em quem detestava a bisbilhotice sobre os bastidores do poder? É possível. Só que a “vingança maligna” do futuro presidente não prosperou devido a um fator com o que ele não contava: a perspicácia de Getúlio e Haroldo.
A dupla sagaz e talentosa de jornalistas chegou a conquistar “Prêmio Esso”, a maior honraria cobiçada por profissionais de imprensa do Brasil, em reconhecimento pelo “furo” traduzido pela revelação das confissões do presidente João Figueiredo. Não deixou de ser registrado, nas matérias elaboradas, o tom de irritação de Figueiredo diante de algumas perguntas que tratavam de assuntos considerados por ele como desagradáveis ou que não mereciam nenhum comentário. Figueiredo revelou, entre outras coisas, que a “revolução não vai acabar”, numa alusão ao golpe de 64 que legou uma ditadura militar ao Brasil durante 21 anos. Recusava-se, também, a endossar a narrativa de que o país estava se defrontando com um regime de exceção. “Temos leis de exceção, só isso”, tergiversou Figueiredo.
A fala do general foi recheada de contradições que são facilmente explicáveis. Figueiredo defendia a “quartelada” de 64 por dever de ofício e honra da firma, mas estava sendo preparado exatamente para o papel de desconstrutor do regime que ajudara a instalar. Não se pode ignorar que foi na gestão de Figueiredo que se deu a abertura política, com a concessão da anistia, a volta dos exilados políticos como Leonel Brizola e Miguel Arraes, o restabelecimento do pluripartidarismo e a restauração de eleições diretas para governadores de Estados. As eleições presidenciais diretas foram reconquistadas pela sociedade a partir de 1989, com uma pletora de candidatos de quase todos os matizes e colorações – vencidas em segundo turno por um jovem político atuante nas Alagoas, que se projetara na mídia como pseudo “caçador de marajás”: Fernando Collor, que derrotou Lula.
As histórias sobre o general Figueiredo, sobretudo no exercício da presidência da República, no que diz respeito ao seu relacionamento com jornalistas, beiram, na quase totalidade dos casos, o jocoso, fazendo parede e meia com o ridículo. Afirmações como “prendo e arrebento quem for contra a abertura política” caíam no folclore, embora simbolizassem, na prática, um compromisso com a democracia, que era tudo o que a sociedade brasileira queria. No fundo, Figueiredo contribuiu para desanuviar a carranca dos militares, tal como esculpida no imaginário popular. Quanto a Bolsonaro, ainda vai-se levar um tempinho para encontrar o rótulo exato que lhe define.