Nonato Guedes
Ministro da Saúde do governo Fernando Henrique Cardoso, empossado a 31 de março de 1998, o senador paulista José Serra Chirico (José Serra), um economista por formação, promoveu avanços inegáveis na Saúde Pública. Implantou um programa de combate à Aids, que desafiava especialistas de todo o mundo, e que depois foi copiado por outros países e apontado como exemplar pela ONU. No setor de remédios, Serra foi mentor da lei de incentivo aos genéricos, o que permitiu a queda nos preços abusivos de medicamentos; também eliminou impostos federais de medicamentos de uso continuado, regulamentou a lei de patentes e encaminhou resolução à Organização Mundial do Comércio para licenciamento compulsório de fármacos em casos de interesse público. Fez tudo isso com competência e sem ser médico.
José Serra deixou o ministério da Saúde em fevereiro de 2002 para se candidatar a presidente da República pelo PSDB, tendo sido derrotado em segundo turno por Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Especialistas de São Paulo o culpavam pelo fracasso no combate à dengue, apontando como um dos seus erros cruciais a decisão tomada que transferiu as ações efetivas aos prefeitos, incapazes de terem atuação proativa, eficaz. Quando Serra assumiu a Pasta havia 559 mil casos do “aedes egypti” espalhados Brasil afora. Em 1999, o país continuou em curva ascendente – e o fato é que ainda hoje há inúmeras recaídas de casos da dengue. O poder tem limites e não obra milagres.
O fracasso no combate a uma epidemia específica não chegou propriamente a estigmatizar José Serra mas é fora de dúvida que desgastou a sua imagem. Ficavam obscurecidas outras iniciativas louváveis encampadas por Serra – foi ele quem introduziu a vacina dos idosos contra a gripe, criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar e a Anvisa e comandou uma cruzada contra o tabagismo calcada na massificação da publicidade sobre os males do fumo. No contexto, destacava-se a introdução de imagens impostas em embalagens de cigarros, que chocavam os fumantes ativos e passivos. Para quem entrou debaixo de ampla desconfiança, dada a sua formação técnica em Economia, Serra foi uma grata surpresa na Saúde. Ele era egresso do ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão, com que tinha mais afinidade e ao qual era vinculado o paraibano Cícero Lucena (ex-senador e ex-prefeito de João Pessoa). Cícero ocupava a secretaria de Políticas Regionais, com alegado status de ministro, e conviveu com Serra no metro quadrado do poder em Brasília. Não tinha muita autonomia, segundo reclamavam políticos paraibanos ávidos por furar o bloqueio do que chamavam “paulistério” de FHC.
José Serra cursava engenharia na USP quando teve de deixar o país na esteira do golpe militar de 1964, dada a sua condição de ativista político de esquerda. Viveu treze anos no exílio, período em que tornou-se mestre em economia pela Universidade do Chile e obteve mestrado e doutorado em Cornell, nos Estados Unidos, tendo sido membro-visitante do Instituto de Estudos Avançados de Princeton. De volta ao Brasil, foi professor da Unicamp, pesquisador do Cebrap, editorialista da “Folha de S. Paulo”, secretário de Economia e Planejamento do governo Franco Montoro, deputado federal e senador, ministro do Planejamento e da Saúde, prefeito da capital e governador de São Paulo. Quando eclodiu o golpe militar, tinha 22 anos e presidia a UNE, União dos Estudantes, cujo prédio no Rio de Janeiro foi incendiado por ensandecidos ativistas de direita que comemoravam a “chegada ao poder” e a “derrubada dos comunistas”.
Serra voltou a ser candidato a presidente da República pelo PSDB em 2010, mas foi derrotado pela candidata Dilma Rousseff, a “Mulher do PAC”, que havia sido lançada pelo presidente Lula da Silva, num arroubo de inspiração política, dentro da estratégia de manter o poder nas mãos do PT, que havia praticamente aparelhado a máquina estatal. O ex-presidente da UNE compensou-se politicamente com as vitórias a cargos executivos em São Paulo e a mandatos legislativos por São Paulo. No governo do presidente Michel Temer (MDB), que se investiu com o impeachment de Dilma Rousseff, José Serra assumiu o ministério das Relações Exteriores, do qual pediu demissão em 2017, alegando problemas de saúde. O mandato de senador conquistado em 2014 conclui-se em 2022, mas deve sinalizar o canto do cisne desse homem respeitado pela sua densidade intelectual e pela sua trajetória como homem público.
Quanto às adversidades ou aos revezes, Serra deu conta de alguns deles no livro “Cinquenta Anos Esta Noite – O golpe, a ditadura e o exílio”, uma autobiografia que desce aos detalhes sobre experiências novas que teve que trilhar quando foi apresentado ao regime de exceção imposto pelos militares no Brasil. No livro, Serra conta que, mesmo mantido à distância pelos ditadores, participara da luta nacional. “E o mais difícil ainda estava por vir: a democratização do Brasil, tarefa apenas em parte realizada ainda hoje. Afinal, a democracia que convive bem com as iniquidades nos convida ao conservadorismo sem imaginação”, entoou Serra. Ele estava certo. E deu sua quota para além da democracia – para a melhoria do serviço público, que é sempre cobrado porque se acredita que pode mais, embora não possa tudo.
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