Nonato Guedes
Governador da Paraíba por duas vezes – uma por via indireta, outra pelo voto popular – o professor Tarcísio Burity costumava repetir em entrevistas e alocuções em geral uma frase que ficou colada à sua personalidade: “O homem se mede pelos obstáculos que enfrenta”. Ele enfrentou inúmeros obstáculos nos dois governos, empalmados entre o fim da década de 70 e meados da década de 80. Abortou rebelião fardada, que foi ensaiada por expoentes de sua confiança no oficialato, administrou conflitos agrários recorrentes, bateu de frente com o declínio da economia paraibana e quedou-se, perplexo, à liquidação extrajudicial do Paraiban, o banco de fomento do Estado, numa medida de força da equipe econômica do presidente Collor, avalizada pelo ex-caçador de marajás que teve em Burity o primeiro governador a declarar-lhe apoio. O banco veio a ser reaberto em outras condições de temperatura e pressão, no governo Ronaldo Cunha Lima-Cícero Lucena.
Foi no combate à seca – revela o jornalista Severino Ramos em livro biográfico sobre Burity – que a sua ação de governo se fez mais exigida e mais presente. Burity enfrentou três anos consecutivos de estiagens, que devastaram culturas agrícolas tradicionais e incidiram, fortemente, na queda da arrecadação do ICM. “Em nenhum momento, porém, faltou assistência do governo”, historiou Severino Ramos, lembrando que já em 1981 cerca de 114 mil trabalhadores rurais eram alistados em frentes de trabalho implantadas em aproximadamente trinta e cinco mil propriedades. O governador não permitiu que as mulheres trabalhassem nessas frentes, e quando o governo do general João Batista Figueiredo cortou as verbas para a seca, ele manteve o pagamento com recursos do Tesouro estadual.
Como observou acertadamente Biu Ramos no livro “Esplendor & Tragédia”, o gesto corajoso de Burity refletiu-se, decisivamente, na sua volta ao governo do Estado pelo voto direto, nas eleições de 1986, em que derrotou Marcondes Gadelha, apoiado pelo esquema do ex-governador Wilson Braga (PDS-PFL) por uma diferença de quase 300 mil votos. Recordo que Burity era deputado federal quando viajei ao interior do Estado – Cajazeiras e Sousa, no Alto Sertão, e lá ouvi rasgados elogios à ação firme dele quando governador no período da seca, mantendo o pagamento via recursos próprios quando o socorro federal faltou. Na volta à Capital, conversando com ele, indaguei sobre a cogitação de voltar ao governo do Estado. Burity hesitou, alegando que a conjuntura local estava muito indefinida e que ele estava militando na oposição, o que lhe abria hipóteses de confronto desvantajoso. Falei-lhe, então, da repercussão alcançada por sua imagem no interior pela presteza com que agiu na emergência da seca. Ele confessou que lembrava das medidas tomadas, mas não tinha noção de que elas tivessem impactado o povo sertanejo.
Sem qualquer pedantismo, ouso afirmar que foi a partir desse relato que lhe fiz que o então deputado Tarcísio Burity passou a se movimentar para pavimentar o caminho de volta ao Palácio da Redenção. A moeda corrente seria outra – a campanha a céu aberto, em praça pública, não no recinto fechado dos colégios eleitorais biônicos. O voto teria que ser conquistado pelo argumento e pelo carisma, não por táticas escusas de aliciamento que, inclusive, não faziam parte do seu comportamento. Burity sofria na pele os efeitos da inclemente estratégia montada pelo governador Wilson Braga para minar seus espaços no cenário político do Estado. Qualquer passo que Burity ensaiasse em termos de discurso político ou de definição partidária era monitorado com “lupa” por Braga e seus emissários instalados no Palácio da Redenção ou aboletados em chefias políticas municipais.
Foi essa “perseguição” de Braga – como a denominou Burity numa outra conversa, mantida com este locutor que vos fala e com o inesquecível Severino Ramos – que fez com que o professor se mobilizasse em várias frentes. Assim é que saiu do PFL, onde chegara primeiro, porque Braga lá se alojara, com um séquito de parlamentares atraídos pelo tropismo do poder de plantão. Ao ingressar no PTB, Burity foi sabotado por braguistas infiltrados que minavam seus espaços de articulação. Por fim, num bem-sucedido lance de contra-ofensiva, logrou ser admitido como filiado nos quadros do PMDB. Dizia estar entrando no partido como soldado, mas, pela sua folha, dava para notar que logo seria promovido a general. Foi o que se deu, com Burity substituindo Humberto Lucena como candidato a governador e saindo consagrado contra Marcondes.
Relembro tudo isto a propósito do esforço de guerra que governantes de todo o Brasil estão empreendendo atualmente, do presidente Jair Bolsonaro ao prefeito de Cajazeiras, José Aldemir Meireles, para o enfrentamento à pandemia do coronavírus. Parece inviável comparar a seca, mesmo com seu cortejo de famintos, de trabalhadores ociosos e de famílias desamparadas, com o monstruoso cenário de vítimas do covid-19 em todo o mundo. As proporções são inigualáveis. Mas tragédias como a da estiagem no semi-árido nordestino deixaram lições para governantes. Talvez a principal delas seja a de que governar é saber eleger prioridades. Toda uma imensa legião de líderes políticos está sendo confrontada agora em seus limites e na sua capacidade de decisão. Oxalá sejam iluminados para fazer o que é correto e minorar, ao máximo possível, a extensão dos sofrimentos causados pelo coronavírus. Aí, então, saberemos quem sobreviveu politicamente a uma calamidade sem precedentes na história das nações.