Nonato Guedes
Na próxima terça-feira, 21, a morte do ex-presidente Tancredo Neves completará 35 anos e a lembrança que ocorre a grande parte dos brasileiros e brasileiras é que a chamada “Nova República”, bandeira empalmada por ele para dar cabo do regime militar, ficou apenas no papel. Até porque Tancredo, embora eleito no colégio indireto que simbolizava o reinado da ditadura por 21 anos, foi hospitalizado e operado às pressas na madrugada do dia da posse, 15 de março. O cargo foi entregue ao vice-presidente eleito José Sarney, na condição de interino. “A frustração era geral”, relatou o historiador Jaime Klintowitz em livro. A “Nova República” era um conjunto de propostas, embasadas em sugestões da própria sociedade civil, para corrigir injustiças econômicas e sociais que dividiam o Brasil entre a Bélgica e a Índia, no concerto das Nações.
O presidente eleito amargara esses 21 anos na oposição ao regime de exceção. Sarney trocara de lado poucos meses antes, depois de comandar o PDS, partido de sustentação da ditadura. Era, portanto, um estranho no ninho, e na convenção do PMDB que sacramentou a chapa que concorreria nas eleições indiretas o oligarca do Maranhão até evitou discursar, temendo ser vaiado. Descrito como figura política rara, conciliador nato, cuja marca de caráter era a tolerância, Tancredo foi absorvido como alternativa para o impasse institucional brasileiro, decorrente da exaustão com o regime militar e da dificuldade que este encontrava para sair de cena. Fez as mais inimagináveis costuras políticas para obter respaldo na transição sem traumas e sem derramamento de sangue. Enfrentou olhares enviesados e reações mal humoradas dos remanescentes da ditadura. Isto era apenas o rictus da despedida do poder, que os mais apegados relutavam passar adiante.
Depois da vitória no colégio eleitoral, contra Paulo Maluf, que se tornou a encarnação do Mal, Tancredo Neves viajou para o exterior e se encontrou com chefes de Estado, numa estratégia que visava demonstrar ao mundo que o processo de redemocratização no Brasil era irreversível. Começou a sentir as dores e o desconforto da doença no dia 8 de março, mas preferiu esconder de todos esse cenário. Em 14 de março, véspera da posse, sentiu-se mal durante missa em ação de graças em sua homenagem no Santuário Dom Bosco em Brasília. Foi sua última aparição pública. Ele foi internado à noite no hospital de base de Brasília, daí enfrentando uma verdadeira via crúcis que culminou com o desenlace. Ao todo, foram 38 dias de agonia, 27 dos quais com o presidente eleito internado no Hospital do Coração em São Paulo.
Jaime Klintowitz narra que Tancredo Neves foi operado sete vezes e dado como recuperado pelos médicos em três ocasiões – numa delas, uma junta médica chegou a encenar uma fotografia com a pretensão de mostrar que Tancredo estava melhor do que na realidade. Nos dias finais, debilitado e sofrendo com as dores causadas por tubos, suturas e cateteres, Tancredo expressou um derradeiro lamento: “Eu não merecia isso”. O simbolismo da coincidência de datas com a do enforcamento de Tiradentes não escapou aos mineiros. O Brasil homenageou Tancredo com um dos maiores funerais da história, só similar ao de Getúlio Vargas em 1954 depois de dar um tiro no peito dentro do Palácio do Catete. Calcula-se que entre São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João del Rei, onde foi sepultado, o esquife conduzindo Tancredo foi acompanhado por mais de 2 milhões de pessoas.
Tancredo era um político habilidoso que participou de acontecimentos memoráveis da história do Brasil, antes de protagonizar, ele mesmo, alguns desses acontecimentos. Foi ministro da Justiça no segundo governo de Getúlio Vargas (o da fase da redemocratização, vencido o Estado Novo). Articulou o acordo que possibilitou a posse de João Goulart na vacância da renúncia de Jânio Quadros, bem como a implantação do sistema parlamentarista em 1961, no qual atuou como primeiro-ministro. Em 30 de março de 1964, Tancredo tentou, inutilmente, convencer o presidente João Goulart a não comparecer a um ato público promovido pelos sargentos no Automóvel Clube, no Rio. Argumentou que a presença do presidente seria vista como provocação – e não deu outra: no dia seguinte, Goulart foi derrubado por um golpe militar.
Tancredo também foi senador da República e em 1984 renunciou ao governo de Minas Gerais para ser o candidato da oposição e o presidente da transição para a democracia. Antes de ir para o hospital, ele tomou o cuidado de assinar uma por uma a nomeação dos ministros e mandou que fossem publicadas imediatamente. Não queria correr o risco de deixar a tarefa para Sarney. Como arremata Klintowitz: “O primeiro presidente civil depois de 21 anos de trevas deveria ter subido a rampa do Palácio do Planalto em 15 de março para a celebração da esperança de um recomeço para o Brasil. Subiu 38 dias depois, dentro de um caixão levado nos ombros de cadetes das Forças Armadas. Em lugar de festa, um velório”. A Nova República foi para o túmulo, com ele.