Nonato Guedes
O presidente Jair Bolsonaro faz mal ao Brasil. É uma figura tóxica, sem noção da gravidade das coisas, incapaz de se render a argumentos irrefutáveis. Além do mais, não tem interlocução com nenhuma figura expressiva das instituições e dos segmentos sociais. Está brigado com os presidentes da Câmara Federal e do Senado, já atacou o presidente da Ordem dos Advogados e do Supremo Tribunal Federal, não dialoga com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil nem com a UNE, com o MST, com a Federação Nacional dos Jornalistas, com os governadores de Estados, principalmente os do Nordeste. Com exceção dos filhos Zero Um, Zero Dois, da claque de milicianos e puxa-sacos do poder de plantão, além de apoiadores arrebanhados como inocentes úteis de aventureirismos golpistas, o presidente está só. E querendo arrastar o Brasil para o despenhadeiro em que ele, pessoalmente, se encontra, no fragor da luta contra o coronavírus – cujo alcance minimiza o tempo todo.
Ontem, o presidente protagonizou novos espetáculos de desobediência à lei, à Constituição, ao liderar manifestações a favor do governo que comanda, a fim de reforçar-se na proposta de reabrir as atividades comerciais, justamente na fase de pico da doença, quando a transmissão comunitária tende a se espalhar pela população. Como pano de fundo das investidas peripatéticas, o presidente adiciona slogans, palavras de ordem e bordões de exortação pela volta do autoritarismo, simbolizado pelo seu objeto de desejo – o famigerado AI-5, datado de 68, o ano das trevas na quadra política nacional. Vale-se da crise econômica e sanitária que o país enfrenta para fazer a apologia da ditadura. Bolsonaro promove atos “assustadores”, no dizer do ministro do Supremo Luís Roberto Barroso. “Está na hora dos democratas se unirem contra Bolsonaro”, convocou o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz.Deter com urgência a escalada autoritária do capitão é a segunda luta que está posta para a sociedade brasileira – a primeira, como se sabe, é o enfrentamento à pandemia da covid-19.
De acordo com a “Revista Forum”, o clã Bolsonaro, desmoralizado diante da opinião pública, parece mesmo preparar o terreno para essa escalada fascista. Num rasgo de estultice, incompatível com a autoridade do cargo, que ele desconhece, da mesma forma como é ignorante da liturgia presidencial, o ex-capitão medíocre e insubordinado chegou a dizer, cercado de apoiadores: “Nós não queremos negociar nada, nós queremos é ação pelo Brasil”. Negociar com quem? Com o presidente da República, que é o mesmo cidadão que disse tais barbaridades. Mais do que nunca, o cenário é suprasurrealista no Brasil.
Recorro a Leonardo Sakamoto, colunista de UOL, para quem a pandemia atual mostra um Bolsonaro incapaz de proteger a vida, o emprego e a democracia. Diz Sakamoto: “O Brasil parece viver um grande Dia da Marmota, eternizado na comédia “O Feitiço do Tempo”, com Bill Murray e Andie Mac Dowell, na qual um mesmo dia se repete indefinidamente. Por aqui sentimos isso acontecer desde Primeiro de Janeiro de 2019. “AI-5! AI-5! AI-5!” Jair Bolsonaro dirigiu-se com carinho a uma multidão que pedia golpe militar e fechamento do Congresso Nacional. Não repreendeu aqueles que exigiam um novo Ato Institucional número 5, que deu poderes à ditadura para descer o cacete geral em 1968, como era de se esperar de alguém que jurou proteger a Constituição. Pelo contrário, expressou apreço geral pelo papel desempenhado pelo “povo”, ali, naquele momento”.
A cada ato e declaração de Bolsonaro apoiando a morte da democracia – prossegue Sakamoto – uma onda de indignação toma conta de uma parte das redes sociais. Ela dá a impressão equivocada de que o impeachment está logo ali, na esquina, e que o Brasil não suporta mais um governante incapaz e autoritário. Enquanto isso, outra parte se incendeia, fazendo crer que é iminente o fechamento do Congresso e do Supremo pelos militares que apoiam Jair Messias, bastando um empurrãozinho. A polêmica torna-se o assunto principal nos dias seguintes, dando energia ao governo e nublando o essencial. O presidente coleciona crimes de responsabilidade desde que se sentou na cadeira presidencial. Mas pior do que suas declarações contra a democracia é o desmonte nas instituições de monitoramento e controle que tem realizado cuidadosamente. Com isso, já digeriu o Coaf, a Receita Federal, a Polícia Federal e, claro, a Procuradoria-Geral da República. As ruas poderiam empurrar o Congresso mas não há a possibilidade de manifestações de rua neste momento. Dilma Rousseff lembrou em entrevista ao UOL (ela, que sofreu impeachment) que “só bater panela contra Bolsonaro não adianta”, mas que manifestação social no isolamento é uma coisa muito difícil.
Bolsonaro é um presidente manco, que precisa se apoiar na tutela militar para se manter num cargo para o qual foi eleito democraticamente. Há um impasse evidente, traduzido assim por Sakamoto: o Congresso não consegue cassá-lo agora e ele não tem força para deixar de lado sua tutela militar e baixar um autogolpe. Isso não significa que não dê azia, domingo após domingo, ver-se o presidente da República queimando a Constituição na frente de um prédio público diferente. Mas isso vai continuar se repetindo no curto prazo. Como consequência, o esgarçamento institucional é irreparável. Além de mortes e desemprego, Bolsonaro vai entregar uma democracia menor após a pandemia do coronavírus – conclui Leonardo Sakamoto. Ele é a encarnação do déspota esclarecido, que quer tocar fogo no país. Até quando isso vai durar?