Nonato Guedes
No recém-lançado livro “Brasileiros”, organizado por José Roberto de Castro Neves, reunindo perfis de 41 personalidades nacionais já falecidas, elaborados por pessoas que com elas mantêm ou mantiveram alguma afinidade – profissional, familiar, de admiração ou de interesse acadêmico, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) escreve sobre Tancredo Neves (PMDB), cujo aniversário de morte completa, hoje, 35 anos. Diz que Tancredo participou de uma “época de gigantes”, “sabia ouvir, embora sem prometer” e tinha empenho em conhecer as questões em jogo. O texto integral de Fernando Henrique Cardoso sobre Tancredo ocupa dezesseis páginas do livro e está disponível no site de “Veja”. Em sua edição impressa, a revista publica uma resenha de duas páginas, assinada por Roberto Pompeu de Toledo, enfocando o perfil que FHC traça de Tancredo.
O empenho do ex-presidente Tancredo em conhecer questões gerais com que tinha que lidar ficou evidente, segundo Fernando Henrique, num episódio em que o então senador FHC foi contatado por um representante do governo americano, nos primeiros meses de 1985, para sondar as perspectivas do novo governo. Relata FHC: “Procurei Tancredo para saber o que dizer e recebi instruções precisas sobre como responder às questões de política cambial e financeira. Fiquei surpreso com os detalhes manejados pelo presidente eleito”. Fernando Henrique também testemunhou a “ansiedade” com que os políticos procuravam Tancredo, depois de sua eleição, e “a calma” com que Tancredo os ouvia, “quase sem secretários, senão que sem eles, e sem tomar nota”. E aduziu Fernando Henrique: “Saber ouvir, embora sem prometer cumprir o desejado pelo interlocutor, é a marca do bom político”.
Tancredo de Almeida Neves foi o primeiro e único civil eleito pelo colégio eleitoral indireto, invenção do regime militar instaurado em 1964 e que já denotava sinais de exaustão. Derrotou Paulo Maluf, do PDS, no colégio eleitoral, contando com apoios decisivos de dissidentes do PDS, partido de apoio à ditadura, que forneceu o senador José Sarney como candidato a vice na chapa de Tancredo Neves. Para buscar dar ares de legitimidade popular à eleição indireta, Tancredo promoveu encontros com representantes da sociedade civil, encampando reivindicações que lhe eram feitas, e também cumpriu agenda de comícios em diferentes capitais brasileiras, inclusive João Pessoa. Atraiu apoio de governadores do Nordeste (com exceção do paraibano Wilson Braga, do PDS) e manteve diálogo permanente com representantes militares e com líderes religiosos. Na véspera da posse a 15 de março de 1985 foi internado em Brasília, vindo a morrer 37 dias depois. Sarney cumpriu até o fim o mandato que era de Tancredo.
Para Fernando Henrique, Tancredo Neves exercia a arte de conversar “com sedução de gozo”. E o tucano escreve: “Se tivesse vencido a campanha das “diretas-já”, as chances do voto popular estariam provavelmente com Franco Montoro, governador de São Paulo, ou com Ulysses Guimarães”. Mas isto não ocorreu, já que a emenda Dante de Oliveira (MT) preconizando as diretas-já foi derrotada no Congresso Nacional. A perspectiva de impasse levou os líderes de expressão do PMDB a abrir caminho para Tancredo, considerado o mais hábil para costurar alianças na bancada governista, atrair apoios na sociedade e enfrentar focos descontentes no meio militar. Vencida a eleição, restava ainda afastar a ameaça de que se tentasse impedir a posse do eleito.
Escreve Fernando Henrique: “Recordo-me que tínhamos mesmo um plano para o caso de alguma reação militar negativa: do Paraná para o Sul haveria base para uma reação e o próprio presidente eleito poderia facilmente deslocar-se para aquela região”. Fernando Henrique arrisca dizer que, sob Tancredo, o país teria tomado rumo diverso. “Tancredo talvez postergasse a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte e, dado seu temperamento precavido, conservador mesmo, preferiria primeiro mastigar melhor o que poderia resultar de sua convocação”. Diz FHC que a Constituição, promulgada um ano antes da queda do Muro de Berlim, “nasceu impregnada com os valores da época: estatizante e, no fundo, anticapitalista, o que obriga até hoje a constantes revisões. Tancredo, crível, experiente e com apoio popular, não deixaria que excessos se transformassem em artigos constitucionais”. Na definição de FHC, é verdadeiro que Tancredo preferia dizer o que lhe parecia conveniente àquilo que verdadeiramente cria e faria. Mas, a seu ver, o que mais lhe caracterizaria a trajetória seria “o homem de convicções, de coragem e de conhecimento dos principais dossiês econômicos e financeiros do país”.