Nonato Guedes
Do ponto de vista jurídico parece não haver dúvidas quanto à consistência de abertura de um processo de impeachment do presidente da República, Jair Bolsonaro. Expoentes de renome como o ex-ministro Ayres de Britto, uma das vozes mais respeitadas na história do Supremo Tribunal Federal, onde classificou o episódio do mensalão como “um ponto fora da curva”, opinam que pelas condutas demonstradas no exercício do cargo o presidente da República já se expõe à hipótese do afastamento, uma vez que tais condutas ferem a Constituição, não se coadunam com dispositivos legais expressos. Tal é o caso do descumprimento por Bolsonaro de recomendações da Organização Mundial de Saúde quanto ao isolamento social nestes tempos de pandemia do coronavírus.
Outros exemplos podem ser elencados – e já começam a ser debatidos por figuras distintas do cenário político e social brasileiro, como o do desrespeito de Bolsonaro à Lei de Responsabilidade. O ministro Gilmar Mendes, outra voz experiente, queixa-se de “comportamento bicéfalo” do presidente Bolsonaro, que, a seu ver, é inaceitável. Por esse raciocínio, o capitão ora age como presidente da República, ora se comporta como cidadão comum. É presidente quando se utiliza da caneta para assinar atos que repassam recursos a Estados e municípios destinados ao enfrentamento do coronavírus. Manifesta-se como cidadão quando se locomove por áreas que, por lei, estão passíveis de confinamento e, ainda, por cima, sem usar a proteção devida que se exige para evitar o contágio ou a disseminação presumida de contágio. Bolsonaro é um dos poucos governantes, no planeta, que não sabe se portar à altura num momento de extrema gravidade, de convulsão sanitária.
Não se está pleiteando ao presidente uma postura de estadista. Esta, como definiu o saudoso doutor Ulysses Guimarães, é inata, não é qualificação que se adquire, prebenda que se corteja. Estadistas foram Churchill em plena Guerra Mundial, Roosevelt e De Gaulle em crises históricas detonadas nos países sob suas lideranças. Tiveram acuidade para fazer a análise correta, a apreciação exata que se impunha sobre como tomar as rédeas das situações-limite e conduzir os povos a caminhos adequados. Operaram como exemplos de patriotismo, de sacrifício, pelas Nações de quem eram originários e escreveram capítulos edificantes que estão inscritos, para sempre, no panteão da História.
Bolsonaro jamais conseguirá constar dessa galeria porque lhe falta equipamento intelectual, além da sensibilidade política para comandar a travessia no instante de crise, quando todos os sinais de alerta estão acionados. Além da falta de talento, o presidente descredencia-se a papéis relevantes pelo seu temperamento permanentemente belicoso, de conflito aberto com as instituições e com os seus representantes. Há quem acredite mesmo que ele põe em curso uma estratégia suicida de caso pensado, apostando na chance de vir a se beneficiar da crise, tal como agem os oportunistas de impasses históricos que, em regra, são bafejados pela sorte ou pelo acaso,não por fatores racionais que expliquem ou justifiquem eventual sobrevivência perante desafios de grande dimensão. O apelo recorrente de Bolsonaro a autoritarismos é agravante do contencioso porque expele o presidente do horizonte democrático que o país respira e no qual o presidente tem que enquadrar.
Parece haver, por trás do comportamento errático e desgastante do presidente da República, um problema de origem: a falta de substância ou conteúdo quanto a propostas para os desafios do Brasil. Essa falta de conteúdo, que denota despreparo eloquente, ficou evidenciado na recusa contumaz de Bolsonaro, como candidato, em debater com os adversários. Aproveitou-se, inclusive, de uma situação extremamente difícil para ele – o atentado à faca que sofreu na campanha em Juiz de Fora, Minas Gerais, para escafeder-se de participar de debates em que teria que dizer ao Brasil as suas propostas concretas. Ganhou nas urnas um cheque em branco, passado por uma maioria que abominava a falta de ética do PT, atolado até o pescoço em escândalos de roubalheira na administração pública brasileira. Bolsonaro foi eleito não pelos seus méritos, mas por ser contra o PT. Ele se tornou produto de um maniqueísmo que implicou alto preço ainda hoje pago pelo povo brasileiro como um todo.
No poder, Bolsonaro revelou-se um aventureiro, que tenta viabilizar a todo custo seu projeto de ditador. Mas os indícios sinalizam que a pantomima por ele encenada, num momento dramático da vida nacional, não surte efeito nem mesmo junto a eleitores remanescentes. O processo de impeachment aparentemente é uma incógnita, hoje, no horizonte institucional, porque líderes de oposição nele empenhados querem se certificar do apoio popular para levá-lo adiante, o que se manifestou nos casos de Fernando Collor e Dilma Rousseff. Descontado esse porém, parece um processo inexorável, meramente condicionado a uma questão de tempo, nada mais.