“Se tivermos colapso da saúde, as pessoas vão se isolar de forma voluntária e descoordenada”. O prognóstico é do senador José Serra (PSDB-SP) em entrevista ao jornal “O Globo” ao comentar as reações que partem de grupos sociais diante da pandemia do novo coronavírus no país. Serra foi ministro da Saúde no governo de Fernando Henrique Cardoso e lembrou, na entrevista, os desafios enfrentados há 20 anos, quando o Brasil buscava solução para outra epidemia mundial: a Aids, e no cargo de ministro da Saúde estava Serra. Aos 78 anos, ele integra o grupo de risco do novo coronavírus e está em isolamento social.
Nas sessões remotas do Senado, de que participa regularmente, ele é uma das vozes que se levanta em defesa do distanciamento social como única alternativa para reduzir os impactos da pandemia na economia e na saúde. “Se perdermos vidas, as pessoas ficarão com mais medo e reclusas. Se tivermos colapso da saúde, vão se isolar de forma descoordenada. Não há dilema”, frisou a “O Globo”. Serra elogiou a gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta no governo Jair Bolsonaro mas cobrou celeridade em algumas ações do ministério como a distribuição de testes e materiais de proteção aos profissionais da saúde.
De acordo com Serra, o enfrentamento à Aids foi um episódio que trouxe uma reviravolta no sistema de saúde do Brasil. “Foi preciso pulso forte e bater de frente com o lobby e os interesses comerciais da indústria farmacêutica internacional para a quebra de patentes. A luta não se restringiu à prevenção da transmissão da doença. Fomos, também, em busca de tratamento. Surgiu um coquetel a ser ministrado aos infectados, além dos medicamentos genéricos. Isso foi fundamental para a queda do número de mortes e provocou mudança radical no mercado de medicamentos no Brasil. Foi uma batalha difícil, mas diferente do que vivenciamos hoje. Agora, a pandemia afetou diretamente a rotina mundial. De repente, nações ricas e pobres se viram dominadas por um inimigo desconhecido e invisível, com consequências nefastas e sem controle, tanto do ponto de vista da saúde quanto da economia”.
Ao comentar a polêmica travada hoje entre saúde e economia, o senador respondeu: “É importante salientar que estamos vivendo uma pandemia com contágio veloz e taxas de mortalidade que superam em 10 vezes as de uma gripe comum. Neste contexto, mesmo sem medidas estatais de contenção, as pessoas já buscariam um distanciamento natural. Ocorre que, para evitarmos um colapso do sistema de saúde, tivemos que promover, inclusive pela coerção do poder estatal, um isolamento social mais severo que gera paralisia em diversos setores econômicos, sobretudo no setor de serviços para as pessoas. Cabe destacar também que a alternativa seria pior, ou seja, não promovermos o isolamento necessário e experimentarmos colapso do sistema de saúde e social. Vimos que as localidades que chegaram nesse estágio de colapso pararam completamente suas atividades, não por demanda estatal, mas por medo, pela absoluta falta de clientes e de demanda por seus produtos e serviços, especialmente em respeito a todos que sofrem ao redor. Assim, não vejo um dilema de fato, pois não há outra opção”.
José Serra conta que no enfrentamento à Aids não teve que lidar com divergências políticas dentro do governo. “O presidente Fernando Henrique sempre me deu total liberdade para definir as políticas públicas de saúde. Quanto mais espinhosa a situação, como foi o caso da Aids, mais ele deu carta branca. Não interferia nem me contradizia na forma como eu conduzia o ministério junto com a minha equipe”. Para ele, o risco maior de divergência na atual crise é a população “ficar sem um norte”. E explica: “Muitos não sabem como se comportar, se seguem a posição do ministro ou a do presidente Bolsonaro, que nega a pandemia, “prescreve” medicamentos e anda nas ruas cumprimentando pessoas. Claro que os mais vulneráveis, os trabalhadores informais, os autônomos, os micro e pequenos empresários, que viram a sua renda virar pó da noite para o dia, têm uma tendência a não cumprir a quarentena imposta pela maioria dos governadores e prefeitos. O exemplo do presidente da República acaba sendo um “aval” para que os que mais sofrem os efeitos econômicos da pandemia mantenham a rotina, como se de fato se tratasse apenas de uma “gripezinha” como o presidente Bolsonaro se referiu ao coronavírus. Isso pode levar a mais infecções, que poderiam ser evitadas”.