Nonato Guedes
Jornalista, escritor, crítico de cinema, Wills Leal, que partiu ontem, expôs-se à sanha da repressão derivada do golpe militar de 1964 sob a acusação de tratar-se de pombo-correio das esquerdas. Em função dessa folha corrida, foi detido, submetido a prosaicos interrogatórios e alvo de perseguições, entre as quais a de ter sido injustamente barrado na Universidade Federal da Paraíba, não obstante ser autor dos mais importantes livros da Cultura paraibana nas áreas de Cinema e do Cotidiano. Professor de Arte, Wills era bastante inventivo e favorável a teses como a do “amor atonal”, posteriormente desenvolvida em livro. Deixou uma vasta contribuição ao turismo paraibano e viu, antes de qualquer outro, a importância da “Roliúde Nordestina” em plena região do cariri, o charme da Festa do Bode Rei, em Cabaceiras e o potencial inexplorado de belezas naturais e de riqueza do patrimônio histórico do Estado.
No livro “O Jogo da Verdade”, editado por “A União” ao ensejo dos 30 anos da Revolução de 1964, consta depoimento de Wills intitulado “Uma Tragédia Pequeno-Burguesa”, narrando, do seu ponto de vista, a ebulição dos acontecimentos que antecederam e sucederam a deflagração do golpe, com a caça às bruxas desencadeada em todas as esferas da sociedade e a atmosfera de terror disseminada entre prisões, torturas, cassações de mandatos, censura e outras arbitrariedades da ordem implantada pela força. Em emissoras de televisão de Pernambuco pipocavam palavras de ordem exortando cadeia ou morte para comunistas e “subversivos”. O Exército estava nas ruas de todo o país, e o governo do presidente João Goulart empreendia rota de fuga. No Recife, onde Miguel Arraes tentava inutilmente resistir, o Palácio do Campo das Princesas fora cercado pelas tropas do IV Exército. Atento ao desenrolar dos acontecimentos e, baseado em experiência, Wills intuiu que sua prisão seria inevitável, por delação de inimigos pessoais ou ideológicos, já que ele figurava no índex ora como esquerdista, ora como anarquista. Um agitador perigoso para aqueles tempos de baioneta calada.
No dia três de abril, o ambiente de radicalização havia se extremado, com invasão de entidades tidas como de esquerda e o anúncio do desbaratamento de supostos aparelhos subversivos, bem como degola na universidade, “intervenção” na Associação Paraibana de Imprensa, comandada por José Leal, tio de Wills. Um artigo publicado no jornal “O Norte”, intitulado “Pombo Correio”, tratava Wills como elemento “super-perigoso” e “responsável por muita agitação”. A denominação de pombo-correio surgira em conversas no antigo Clube Universitário (CEU), que funcionava no Cassino da Lagoa, em razão das constantes viagens de Wills Leal como dirigente nacional de cineclube e cursos de cinema. Ao ler o artigo, Wills concluiu que não havia escapatória e que sua prisão era questão de horas.
Embora não tivesse qualquer militância política, pesavam fatos contra ele, como o de ter sido um dos detidos quando da invasão da Faculdade de Direito de João Pessoa no início de 1964, em meio a uma “bagarre” que opôs estudantes e professores identificados com a direita e com a esquerda, como extensão do clima de agitação que se respirava em todo o país. Wills também participara de uma conferência intitulada “Cinema, Universidade e Povo”, junto com Octacílio Queiroz, Juarez Batista, Pedro Santos, Jomard Muniz de Brito e Virgínius da Gama e Melo. Leal era responsável pelo Serviço de Cinema, proprietário de uma câmera de filmagem pertencente à UFPB que estava sendo utilizada num filme sobre as Ligas Camponesas. A câmera era russa, comprada numa exposição no Rio e estava emprestada a um grupo de cineastas. Dentro de casa, Wills procurava se desfazer de livros que poderiam ser considerados comunistas pelos militares, fixando os olhos, ao mesmo tempo, no movimento de rua, atento à passagem de um jeep do Exército pelas imediações. Foi, finalmente, alcançado no portão por um oficial que o convidou a ir ao Décimo Quinto Regimento de Infantaria.
Ficou numa cela grande, onde estavam outras 15 pessoas e a partir daí enfrentou a saga dos interrogatórios e das punições, com seu afastamento de cargos que exercia na área de cultura. Havia insinuações, também, de que Wills era muito parecido com um cidadão que fora visto no aeroporto dos Guararapes no Recife por ocasião da explosão de uma bomba que visava atingir o general Costa e Silva, mas que acabou matando o jornalista Edson Régis. A versão montada contra Wills, nem de longe, era crível. Wills foi, finalmente, posto em liberdade, após o suplício a que o submeteram. Encerrada a longa noite das trevas, pôde desempenhar, na plenitude, papéis da mais alta relevância que impulsionaram o desenvolvimento da Paraíba, com iniciativas pioneiras e reconhecidamente transformadoras. O Estado muito deve ao conhecimento e ao trabalho de Wills na promoção de atividades e eventos que revolucionaram o calendário paraibano. Daí a lacuna que ele deixa e que é testemunhada por figuras exponenciais da vida pública local.